quarta-feira, 29 de outubro de 2014

TERCEIRIZAÇÃO, CORRUPÇÃO, A ADMINISTRAÇÃO REFÉM E A FALÁCIA DA EFICIÊNCIA

Ileana Neiva Mousinho*


A terceirização de serviços tem sido apresentada à sociedade como uma forma do Estado brasileiro ter mais eficiência na prestação de serviços públicos. Por essa propaganda, se a Administração Pública contrata empresas prestadoras de serviços para executar atividades que não são atividades tipicamente estatais, e concentra seus esforços nas atividades estatais típicas (saúde, educação, segurança pública), o Estado maximizaria a sua capacidade de bem realizar essas atividades essenciais, realizando os direitos fundamentais dos cidadãos. Por outro lado, ao cometer as atividades não estatais a empresas especializadas, o Estado aumentaria o grau de satisfação da sociedade, uma vez que, com a sua especialização, essas empresas prestariam um serviço muito melhor.
Ledo engano! Em primeiro lugar, o que vemos hoje não é, também, o projeto em execução, de alguns governantes, de terceirizar saúde, educação e segurança? Logo, o discurso de que só seriam terceirizadas atividades que não fossem essenciais ao Estado já se mostrou falso.
Em segundo lugar, como distinguir o que é atividade estatal típica? A limpeza urbana não é atividade essencial da administração pública? E a limpeza urbana não está relacionada ao direito fundamental à saúde, pois se relaciona à higiene e à prevenção de doenças?
Em terceiro lugar, que especialização detêm as  empresas prestadoras de serviços (na verdade, são empresas de locação de todo tipo de mão de obra),  se, quando entregam o orçamento dos seus serviços à administração pública, nas chamadas “planilhas de custos e formação de preços”, inserem todos os gastos que terão com os empregados que utilizarão nos contratos de prestação de serviços, inclusive treinamentos. Ou seja, a administração pública contratante paga pelo treinamento dos empregados da contratada. Ora, mas não contratou a contratada pela sua expertise? Então, por que tem que pagar pelo treinamento dos seus empregados?
 O absurdo é maior, ainda, quando se sabe que a empresa contratante dos empregados não raro aproveita os empregados da contratada anterior, cujo contrato com a administração pública terminou, e que estão trabalhando no órgão público há tempos, e, portanto, mais do que treinados na rotina e nos serviços naquele órgão. No entanto, contratação após contratação, lá está, nas planilhas de custos e formação de preços dos contratos, a cobrança dos valores de treinamentos. E pior, tais treinamentos não são sequer realizados.
O Ministério Público do Trabalho em várias investigações e ações judiciais já demonstrou que, nessas sucessivas contratações de empresas prestadoras de serviços terceirizados, os empregados são coagidos a devolver verbas rescisórias, sob pena de não serem “aproveitados” na empresa que será a nova contratada da administração pública. 
O que a sociedade brasileira vê desfilar pelo noticiário da TV e dos jornais são casos e casos de corrupção em que a terceirização é o mecanismo da corrupção. Cita-se, um exemplo: a Operação Hígia, deflagrada nos Estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, onde as investigações demonstraram que as carteiras de trabalho dos empregados eram fotocopiadas para comprovar aos gestores de contratos o número de empregados previstos no contrato, mas, na verdade, a contagem do número de empregados, feita por agentes da Polícia Federal, nos diversos hospitais, demonstrou que havia um número menor de empregados trabalhando. Repetia-se o mesmo nome de empregado, e a cópia de suas carteiras de trabalho, em diversos locais de trabalho.
Sob o discurso da eficiência da terceirização, o que se emerge, na realidade, é a eficiência com que a terceirização tem sido utilizada para fraudes com essa.
Outra forma de corrupção ocorre com a contratação emergencial, com dispensa de licitação, de empresas prestadoras de serviços terceirizados ou de falsas Organizações Sociais (OS), que superfaturam os preços dos contratos de prestação de serviços e servem, ainda, aos interesses econômicos e eleitorais do político que engendrou a sua contratação, disponibilizando-se a contratar, como empregados, as pessoas indicadas pelo político.
Além do valor superfaturado ser rateado entre as empresas e o(s) administrador (es) público(s) e político(s) – ganhos financeiros - há ainda o ganho eleitoral, pois o político emprega seus cabos eleitorais ou pessoas que passarão a votar nele. E tudo isso, em burla ao concurso público e ao princípio da impessoalidade da administração pública.
Há muito tempo a linha entre atividade-fim e atividade- meio vem sendo burlada pela administração pública. A terceirização dos serviços de saúde tem ocorrido em algumas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) em todo o Brasil, com contratação de organizações sociais. Em Natal, em passado recente, o Município de Natal terceirizou com a Associação Marca, que quarteirizou com a Associação Salute, ambas do Rio de Janeiro, a administração e contratação de pessoal para a UPA de Pajuçara. Após atuação do Ministério Público Estadual e designação judicial de um interventor, houve a economia de milhões de reais para os cofres municipais.
Terceirizar, com certeza, não é mais barato...
Um outro dogma pró terceirização é de que a terceirização de serviços de saúde gera mais eficiência, pois os servidores do SUS não se interessaram pelo serviço. Lança-se no servidor público a pecha de descompromissado, para “vender o peixe” da terceirização, enaltecida como mais eficiente porque não se tem as “amarras” da administração pública (contrata-se, diretamente, sem licitação; compra-se, diretamente, sem licitação), como se o mal estivesse no procedimento licitatório, quando está na falta dele ou no seu desvirtuamento.
Há, portanto, uma propaganda levada a efeito há muito anos para o cidadão achar que a terceirização é boa para o Estado brasileiro. No entanto, o que o cidadão atento pode observar é o contrário, pois terceirizar tem saído muito caro para o Estado brasileiro: ou há superfaturamento de preços; ou empresas “somem”, deixando os seus empregados sem o pagamento de verbas salariais e rescisórias, e o Estado arca com a responsabilidade subsidiária por tais  débitos trabalhistas.
A verdade é que, ao escolher terceirizar serviços, os administradores públicos, no caso específico da saúde, educação e segurança, passaram a não investir em tais serviços. Hospitais desaparelhados, anos sem fazer concurso público, ou seja, sucateamento do sistema público de saúde, para que, quando a “solução” da terceirização fosse dada, a ideia caísse em solução fértil. Uma população desencantada com os problemas da saúde pública, iria ficar encantada com uma UPA que funcionasse com um relógio suíço, totalmente terceirizada. Só que não funciona... Custa mais caro e não funciona.
Os valores repassados para as empresas prestadoras de serviços e Organizações Sociais, se fossem destinados aos serviços públicos também gerariam eficiência. E se há, hoje, ineficiência, não é ela gerada pela Lei de Licitações, mas por mau gerenciamento dos recursos públicos.
Então, por que não investir em treinamento e capacitação dos servidores públicos; por que não instituir cargos em comissão em valores compatíveis com a responsabilidade de ser diretor de hospital, e exigir desse gestor a capacitação e a formação necessárias para ocupar tal cargo, com dedicação exclusiva?
Em vez de qualificar e valorizar o servidor público, e também, exigir disciplina, cumprimento de horário e eficiência, e, em caso de descumprimento desses deveres, aplicar as sanções previstas nos estatutos dos servidores públicos, a opção do Estado brasileiro tem sido aumentar o espectro da terceirização, invadindo a educação, a saúde e a segurança pública.
Se contratar empresas prestadoras de serviços tem sido a opção para as chamadas atividades-meio; contratar Organizações Sociais, OSCIPS, ONGs (do chamado Terceiro Setor) tem sido a opção, nas atividades-fim. Justifica-se que se trata do Terceiro Setor contribuir com o Estado, para a realização de suas atividades essenciais.
Um exame do que ocorre na realizada destrói essa tese.
Basta verificar-se que, se há alegação de carência de recursos estatais para a prestação de serviços de saúde e educação, só haveria real ajuda dessas organizações sem fins lucrativos, se elas trouxessem recursos financeiros adicionais para o Estado, de modo a suplementar a capacidade financeira estatal, e, assim, juntos prestarem os serviços de educação e saúde.
O que se observa, porém, é que essas entidades (ou pseudo entidades) sem fins lucrativos, recebem recursos do Estado e não entregam bens ou recursos financeiros para suplementar a capacidade estatal de prestar serviços públicos. São contratadas, apenas, com a alegação de que têm especialização naquela área, que sabem administrar muito bem, que arregimentarão empregados sem as amarras do setor público (leia-se concurso público) e que despedirão, com facilidade (sem necessidade de processo administrativo prévio, com ampla defesa), os empregados ineptos ou desinteressados. Em suma, essas Organizações Sociais e congêneres, vendem, tão somente, a terceirização, e no bojo dessa, infelizmente, tem-se sido verificada a corrupção.
Essa realidade deve ser muito bem analisada pelo cidadão, para que seja crítico em relação ao discurso em defesa da terceirização.
E não é preciso mais do que um exercício de raciocínio lógico para os cidadãos entenderem que, quando há terceirização da limpeza urbana, ou da poda de árvores, como se pode mensurar corretamente o serviço prestado? Faz-se uma previsão de gasto, estima-se que tantas toneladas de lixo serão recolhidas e tantas árvores serão podadas. Mas como controlar o número real, como saber se a administração pública não está pagando a mais?
Os valores vultosos dos contratos de prestação de serviços de limpeza urbana e a “complexidade” de suas planilhas de preços (argumento sempre utilizadas para que não tenham a necessária transparência) não deixam dúvidas: não se trata de um serviço barato e, considerando-se a variação do lixo recolhido, apesar da possibilidade de pesá-lo, as estimativas de preços, com certeza, não são feitas a menor.

Cita-se como exemplo dessa assertiva, o fato de que o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte corrigiu o projeto básico e os preços dos serviços de coleta de lixo de Natal, que seriam objeto de licitação. O Município acatou a recomendação e lançou edital com o preço do serviço calculado com a análise conjunta dos técnicos do Tribunal de Contas do Estado. O resultado? As empresas que prestavam serviços não aceitaram o preço proposto e a licitação foi deserta. Destaque-se que o valor estimado pela administração pública era de R$ 333,5 milhões e o preço orçado pelas empresas variava de R$ 391,8 a 393,2 milhões. Uma diferença de preço em torno de 60 milhões de reais. 


Portanto, além dos serviços terceirizados custarem muito caro, a terceirização de serviços torna a administração pública refém das contratadas. Se a administração não aceitar o preço proposto, não recebe o serviço, e já sem estrutura para executá-lo, mercê dos sucessivos anos sem concurso público e sem aquisição de máquinas e equipamentos, fica refém das contratadas.
 Um outro fato confirma que a Administração Pública já está refém da terceirização. Os serviços terceirizados por intermédio de cooperativas médicas são interrompidos quando a Administração Pública não aceita os preços propostos pelas entidades. No Rio Grande do Norte, várias cooperativas médicas prestam serviços ao SUS, em especialidades  como cardiologia, pediatria, ortopedia, neurocirurgia e anestesia. Logo, setores essenciais da saúde são “terceirizados” e não há médicos estatutários em número suficiente, nessas especialidades. Não aceitar o preço proposto, significa paralisar os serviços de saúde, o que, efetivamente, ocorreu, várias vezes, quando o Estado do Rio Grande do Norte e o Município de Natal, tentaram negociar valores menores.
Diante desse quadro, que evidencia total dependência do Estado das cooperativas médicas, pela opção errônea em não realizar concurso público e não elaborar um plano de cargos e salários para a carreira de médico, o  que se observa é que a administração pública fica refém das cooperativas médicas.
Quando o Estado do Rio Grande do Norte decidiu não contratar mais cooperativas e realizar concurso público, precisou,  dada a necessidade emergencial, realizar primeiro uma chamada pública, até que fosse organizado o concurso público. Foram realizadas cinco chamadas públicas para contratar médicos. Porém, não conseguiu encontrar profissionais que se interessassem pelo certame, inclusive, tendo o Ministério Público Estadual investigado que os profissinais eram convencidos pelas cooperativas a não aderirem ao certame. 
A administração pública além de refém, sofre calote na terceirização.
Não é fato desconhecido, que, ao final de muitos contratos de prestação de serviços terceirizados, as empresas contratadas “somem” e não pagam aos seus empregados as verbas rescisórias, responsabilidade que passa a ser suportada (duplamente) pela administração pública.
Mecanismos têm sido pensados ao longo do tempo para controlar a execução dos contratos de prestação de serviços. A Lei de Licitações estabelece, no seu art. 67, que a execução dos contratos deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração Pública, especialmente designado para tal fim. A Lei de Transparência determina que os entes da Federação disponibilizarão a toda pessoa física ou jurídica os dados referentes aos contratos de prestação de serviços terceirizados, com nomes das empresas contratantes e valores da contratação. Essas informações, todavia, não são suficientes, dado que a corrupção na terceirização de serviços manifesta-se, também, pelo superfaturamento dos contratos em relação ao número de empregados realmente colocados à disposição da administração pública, sendo notórios os casos em que, no contrato há mais empregados do que o número realmente disponibilizado nos postos de trabalho.
Portanto, controlar quantas toneladas de lixo foram recolhidas, quantas árvores cortadas, quantos empregados da empresa prestadora de serviços terceirizados estão realmente trabalhando, se esses empregados estão recendo as verbas trabalhistas de forma correta, se o serviço está sendo corretamente prestado, se os encargos trabalhistas e impostos estão sendo recolhidos pela contratada, revela-se uma tarefa hercúlea e até impossível para o servidor público designado gestor do contrato e para o cidadão. É uma tarefa difícil para o Ministério Público, para as Controladorias e para os Tribunais de Contas.
No afã de mais controle, e para evitar a terceirização de serviços, mais mecanismos são criados, como a conta vinculada aos contratos de prestação de serviços. Por esse meio, a Administração Pública não entrega todos os recursos para as empresas prestadoras de serviços, e destina parte dos recursos a uma conta vinculada ao contrato de prestação de serviços, depositando nessa conta, que só pode ser movimentada por ordem da Administração Pública, as verbas de FGTS, aviso prévio, 13º salário e férias, que são verbas que eram pagas de forma diferida, a cada mês, em cada fatura, mas, muitas vezes, no momento de pagá-las ao trabalhador, a empresa alegava que não tinha recursos.
Em mais um aspecto denotador da corrupção, empresas que recebem, por exemplo, faturas de 10 meses consecutivos, quando chega o momento de pagar a metade do 13º salário (30 de novembro de cada ano), e, portanto, já receberam da Administração Pública 10/12 da verba do 13º salário, alegam que não têm recursos para pagar aos empregados. Mas como, se já receberam 10/12, e só têm que pagar 6/12, já que o restante pode ser pago até 20 de dezembro de cada ano? É por isso que se afirma que, basta o cidadão refletir sobre esses fatos, que verá o mal que é a terceirização, não só para os empregados, mas para a sociedade brasileira, pela sua potencialidade de propiciar a corrupção.
Com a conta vinculada, busca-se evitar que os recursos estatais sejam desviados pelas empresas, que em vez de utilizá-los para pagar aos empregados utilizados no contrato, os utilizam para outros fins. Mas, deve-se convir que é uma medida que exige a capacitação dos gestores públicos, impondo-lhes mais uma responsabilidade. E tudo porque, já se verificou, na prática, que não é possível confiar nas contratadas que prestam serviços terceirizados.
É urgente, portanto, que a sociedade manifeste-se contra a terceirização nas atividades estatais típicas e exija maior transparência nos contratos de prestação de serviços terceirizados nas atividades-meio, exigindo-se, por exemplo, que nas páginas de transparência sejam publicadas as planilhas de custos e formação de preços dos contratos; as datas em que foram efetuados os pagamentos das faturas; os nomes e CPFs dos empregados terceirizados lotados em cada posto de trabalho, de modo a evitar-se empregados fantasmas e utilização do nome e CPF de um mesmo empregado em vários contratos, quando, obviamente, não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Sem controle, da forma como está se espraiando, a terceirização de serviços não traz eficiência ao serviço público. O que a realidade demonstra é que a terceirização de serviços tem sido um mecanismo para a corrupção, propiciando o enriquecimento ilícito de alguns empresários e servidores públicos, em detrimento de trabalhadores cada vez mais explorados no trabalho e mais suscetíveis a acidentes de trabalho; e em prejuízo do erário público..

  Ileana Neiva Mousinho é Procuradora do Trabalho no Rio Grande  do Norte.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A terceirização, a pessoa e dois acidentes: metáforas de contraponto à Constituição

Victor Hugo Boson[1]


Era 19 de maio de 2013 e alguns jornais veiculavam a notícia de um acidente fatal, ocorrido na Bacia de Santos, envolvendo um trabalhador terceirizado. O plataformista Leandro de Oliveira Couto, 34 anos, empregado de uma intermediadora de mão-de-obra que prestava serviços à Petrobrás, morreu às 10 horas do dia anterior, imediatamente após sofrer uma queda de uma altura de 20 metros na plataforma SS-69[2].
A morte de Leandro aconteceu setenta e duas horas após a morte de Pedro, um outro plataformista terceirizado, no mesmo local e em condições muito semelhantes[3].
Tragédias como as que vitimaram Leandro e Pedro se repetem pelos dias afora, acometendo tantos outros no universo laboral brasileiro. Mas histórias fatais como essas são revividas e reencenadas, presentificadas e banalizadas, de forma potencializada no contexto da terceirização de mão-de-obra.
Segundo dados oficiais do Ministério do Trabalho e Emprego, divulgados em 2005 em seminário sobre o tema, de cada dez acidentes de trabalho ocorridos no Brasil, oito acabam por vitimar empregados terceirizados e, na hipótese de morte, quatro entre cinco ocorrem nas prestadoras de serviço[4].
As estatísticas setoriais demonstram um maior índice de acidentes com morte entre trabalhadores terceirizados. Em 2010, para cada morte por acidente de trabalho de empregado direto do setor elétrico brasileiro, corresponderam cerca de onze mortes de empregados de terceirizadas[5]. No setor do petróleo, os dados da Federação Única dos Petroleiros mostram que, entre 2000 e 2010, de 283 mortes por acidentes de trabalho, 228 (o equivalente a 81%) foram de terceirizados[6]. Nas unidades da Petrobrás, nos últimos quatro anos, houve 65 mortes em acidentes de trabalho, sendo que 61 delas vitimou empregados de intermediárias[7].
A terceirização precariza a vida humana, ao ser um fator de elevação dos riscos relativos à saúde e segurança do trabalhador. Dentre os fatores que se combinam e influem na elevação exponencial dos riscos acidentários no trabalho terceirizado, estão o mitigado controle fiscalizatório direto do local de trabalho por parte do empregador, a existência de órgãos distintos para mapeamento de riscos e acompanhamento de Programas Preventivos de trabalhadores terceirizados (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes)[8], a dificuldade dos órgãos públicos fiscalizatórios em identificar e chegar às empresas prestadoras de serviços e seus empregados (dada a natureza de meras intermediárias, com visibilidade menos expressiva para a sociedade civil e Poder Público), a alta rotatividade dos terceirizados (44,9% contra 22% dos diretamente contratados)[9] e a precariedade dos seus vínculos e seus impactos negativos na adequada formação para prevenção acidentária do trabalho.
Ademais, em relação à jornada contratual de trabalho, as escassas fontes sobre o tema indicam que os terceirizados são contratados para jornadas superiores à dos empregados diretos[10], isso sem considerar os maiores índices de horas extraordinárias, que importam no maior desgaste físico e psíquico desses trabalhadores, mais distanciados do chamado “direito à desconexão do trabalho”[11].
Some-se a isso o fato de o modelo de relação triangular ser muito utilizado em setores e para atividades que, por sua natureza, envolvem maior risco, de modo a ampliar ainda mais as ocorrências acidentárias graves e óbitos do trabalho.
Desse modo, quando o assunto é a preservação da higidez e da vida, a subcontratação de mão-de-obra cria um contexto fático de maior vulnerabilidade dos trabalhadores inseridos na sua dinâmica. Aqui, o empregado terceirizado se torna alguém menor, menos empregado, porque mais precarizado em seu contexto, como nota Márcio Túlio Viana[12].
A geometria da terceirização concorre para um modelo de gestão da força de trabalho que acaba por potencializar transgressões ao direito constitucional a um meio ambiente de trabalho saudável (art. 200, VIII, CF/88), já historicamente frágil no contexto brasileiro, e ao direito fundamental de redução dos riscos inerentes ao trabalho, mediante normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, XXII, CF/88), que são sempre interpretados à luz da determinação da progressividade e não retrocesso social dos trabalhadores urbanos e rurais (art. 7º, caput, CF).
Tais diretrizes constitucionais não são pontos meramente programáticos, muito menos promessas a serem cumpridas de acordo com a conveniência empresarial. Longe disso, como todos os mandamentos constitucionais, são revestidas da mais alta dimensão de eficácia, sequer dependendo de regulação posterior para se efetivar.
Tamanha a importância desses direitos, que doutrina e jurisprudência caminharam no sentido de que toda a densidade normativa relacionada à saúde e segurança do trabalhador tem características de indisponibilidade, em face do alto valor social que encerra e porque deriva do assentado da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade do direito à vida e à saúde (art. 5º, caput e art. 196, caput, CF/88). É dizer, esse plexo protetivo, ainda que infraconstitucional, guarda uma necessidade de irrecusabilidade da sua observância e exige uma maior intensidade no nível da imperatividade dos seus comandos: são de ordem pública.
É nessa esteira que os métodos de organização do trabalho que contrastam com o conteúdo das normas protetivas à integridade e saúde do trabalhador, caso da terceirização, devem ser considerados incompatíveis com a ordem jurídica nacional. Lembre-se: a diretriz do art. 170, caput, da Constituição condiciona a livre iniciativa ao desenvolvimento dos pressupostos de respeito à classe trabalhadora como segmento social a merecer adequada proteção contra a truculência do sistema capitalista, mediante a valorização do trabalho.
O modelo triangular de contratação, do modo como efetivado na atualidade, considerados os prejuízos impostos à saúde e segurança do trabalhador, comporta, no entanto, dimensões de reificação das relações de trabalho que tornam inconciliável a prática produtiva com os pilares de dignidade humana e valorização do trabalho (art. 1º, III e IV, CF/88), influindo para um processo de desumanização das relações e de antagonismo aos marcos constitucionais de tratamento do trabalho humano.
Na tessitura relacional de tudo isso, que perpassa pelos dois acidentes e chega à pergunta sobre o lugar conferido à Constituição e à pessoa no contexto produtivo atual, despontam contrastes os mais diversos. Entre a Constituição e a realidade da terceirização, os dados anunciam a antítese entre o normativo e o fático, ou, na linguagem dos juristas, entre o dever-ser e o ser[13]. Talvez Leandro e Pedro tenham sido vítimas dessa antítese, deflagrada na disjunção conflituosa entre, de um lado, a norma que quer proteger o trabalho e, de outro, a realidade produtiva que contraria incisivamente o seu comando.
E essas cenas dos capítulos quotidianos da vida do direito e do trabalho exigem uma postura de reflexão, pelos atores sociais, acerca de quais os caminhos seguir na busca pela efetividade da norma constitucional, o que implica, em paralelo, na própria reflexão sobre os limites que a Constituição impõe à terceirização. Essa é uma tarefa do tempo presente. Porque na dinâmica da Constituição não há espaços para a demora.



[1] Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Email: victorhboson@ufmg.br
[4] Terceirização e Desenvolvimento: uma conta que não fecha. Dossiê sobre o impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos. Elaboração: CUT/DIESSE, Setembro, 2011, p. 14. Disponível em http://iurbanas.hospedagemdesites.ws/wordpress/wp-content/uploads/2012/01/terceirizacao.pdf.
[5] Segundo dados da Fundação Coge, disponíveis em: http://www.funcoge.org.br/csst/Sintese_Relatorio_2010.pdf. A Fundação Coge, desde o ano 2000, é a instituição que tem realizado a elaboração do Relatório de Estatísticas de Acidentes no Setor Elétrico Brasileiro.
[8] Ver, a propósito, a Norma Regulamentar n. 5 do Ministério do Trabalho e Emprego.
[9] Terceirização e Desenvolvimento: uma conta que não fecha. Dossiê sobre o impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos. Elaboração: CUT/DIESSE, Setembro, 2011, p. 06. Disponível em: http://iurbanas.hospedagemdesites.ws/wordpress/wp-content/uploads/2012/01/terceirizacao.pdf. Quanto ao tempo de emprego, a diferença entre trabalhadores diretos e terceiros é de 5,8 anos para os trabalhadores diretos, e de 2,6 anos para os terceiros.
[10] Fonte: Rais, 2010. Elaboração DIEESE/CUT Nacional, 2011. Nota: setores agregados segundo Classe/CNAE 2.0. Não estão contidos os setores da agricultura. Esses dados foram obtidos na RAIS 2010 On line.
[11] Jorge Luiz Souto Maior apresenta o direito à desconexão do trabalho, que pode ser entendido como a limitação do tempo de trabalho a quantidades que sejam condizentes, por exemplo, com a perspectiva da proteção da vida privada e da saúde do trabalhador, sob o ponto de vista do interesse social e da humanização das relações de trabalho. Ver: http://portal.trt15.jus.br/documents/124965/125420/Rev23Art17.pdf/0b3b7bb7-f57d-4782-9ad8-91fdc428c88b
[12] VIANA, Márcio Túlio. As várias faces da terceirização. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 54, p. 141-156, jan./jun. 2009, pág. 141.
[13] Trata-se, aqui, da distinção entre ser e dever-ser em termos ontológicos, trabalhada na Teoria Pura do Direito, de Kelsen.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

A Face Trágica da Terceirização Trabalhista: Do Caso Rana Plaza ao Dilema Brasileiro



Pedro Augusto Gravatá Nicoli[1]

Em 24 de abril de 2013, 1.138 trabalhadoras e trabalhadores morreram e mais de 2.000 ficaram gravemente feridos em um dos maiores acidentes industriais da história da humanidade. A tragédia ocorreu no complexo têxtil Rana Plaza, em Savar, na periferia de Daca, capital de Bangladesh, país de mais de 150 milhões de habitantes no sul da Ásia. O Rana Plaza era um edifício de nove andares, no qual operavam diversas fábricas têxteis, onde milhares de pessoas trabalhavam em condições de segurança absolutamente precárias. Com o peso e a vibração das muitas máquinas de costura em operação, somados aos problemas estruturais, de construção e conservação, o edifício ruiu, levando consigo a vida dessas centenas de mulheres e homens.
Engana-se quem pensa ser esta uma questão local, distante, restrita a um país sabidamente descumpridor de normas mínimas de proteção ao trabalho humano. Trata-se, ao contrário, de uma tragédia de proporções globais, que, com a dor imensurável das centenas de vítimas e suas famílias, expõe as artérias da lógica contemporânea da exploração de trabalho. Dezenas de grandes marcas internacionais de confecção tinham relações produtivas diretas e indiretas com as fábricas do Rana Plaza, sobretudo por cadeias de terceirização. Gigantes como Carrefour, Walmart, Benetton, GAP, Bonmarché, El Corte Inglés e Primark, entre muitas outras, fabricavam seus produtos naquele espaço de trabalho desumanizado. Nos escombros, entre os corpos de trabalhadores e toneladas de entulho, foram encontrados inúmeros registros de pedidos dessas multinacionais, além de peças prontas e identificadas, etiquetas e embalagens que não deixam dúvida desse envolvimento. Na sanha pela lucratividade, mancham de sangue humano suas criações de moda.
A escala assustadora do desabamento do Rana Plaza escancara a questão da exploração do trabalho no mundo globalizado. Vêm à tona os esquemas de desconcentração produtiva transnacional e de terceirização, pelos quais grandes empresas buscam espaços de produção em que normas de proteção aos trabalhadores têm menor rigor, em prática que ficou conhecida como dumping social. Implanta-se, como aponta Alain Supiot (2008), um verdadeiro “shopping” de legislação, em que países mais pobres entram em regime de concorrência para a atração de investimentos internacionais. Livres de restrições estatais, os grandes grupos econômicos escolhem, como quem compra qualquer tipo de produto, espaços locais que ofereçam menos leis sociais e, assim, custem menos, mesmo que com sacrifícios à segurança e à vida de trabalhadores.
O que um evento como esse revela, em última análise, é uma correlação estrutural entre as práticas produtivas e “técnicas de gestão” do capitalismo global e os efeitos desumanizadores do trabalho explorado sem limites. Não se trata de uma mera fatalidade, um acaso ou imprevisibilidade. Em esquemas de terceirização há, em verdade, uma relação de assunção consciente de riscos pela diminuição das proteções. São riscos que, além de conhecidos e assumidos, chegam a ser estimulados e contabilizados para o aumento da lucratividade na produção.


Desde a ocorrência da tragédia do Rana Plaza, a discussão sobre a responsabilidade social de empresas em cadeias produtivas ganhou novo fôlego. Redimensionado em sua força jurídica, o próprio conceito de responsabilidade social afasta-se de um fundo publicitário e passa a incorporar instrumentos de real imputação por toda a cadeia de agentes envolvidos, a despeito das dificuldades formais que as ordens jurídicas possam apresentar. Reforçam-se instrumentos como o dever de vigilância, a noção de esfera de influência e relativiza-se a clássica defesa do desconhecimento das práticas por parte do tomador final de serviços.
Novas estratégias, papéis institucionais e atores se aliam nesse quadro. É o que se vê no caso do Acordo Rana Plaza, construído após enorme pressão diante da tragédia de 2013, com a participação de atores governamentais, além de sindicatos de trabalhadores, ONGs e a Organização Internacional do Trabalho, que assumiu a condução dos trabalhos. Tal acordo resultou em uma experiência inovadora, com a formação de um fundo internacional administrado pela OIT, em que cotizações das empresas envolvidas, além de doações, visam indenizar vítimas e fazer face às despesas médicas. Originalmente, previu-se a necessidade de 40 milhões de dólares para tal fundo, dos quais, até o presente, cerca de 18 milhões foram levantados, tendo os repasses para as vítimas e famílias sido iniciados neste ano.
E o Brasil nesta história? Os últimos movimentos institucionais em relação à disciplina trabalhista brasileira demonstram que o caso Rana Plaza pode não estar assim tão distante. A figura da terceirização, prática que, em qualquer de suas escalas, resulta em precarização generalizada, afeta intensamente também a realidade local. A possibilidade de livrar-se juridicamente das responsabilidades da prestação de trabalho, aproveitando-se dos resultados financeiros dele, faz com que atores econômicos predatórios invistam todos os seus esforços na máxima admissão da figura. No Brasil, esse é um tema que tem já história relativamente longa, e se coloca hoje no centro da pauta trabalhista, com alguns movimentos de extremo perigo: o Projeto de Lei 4.330/2004, a pressão do patronato pela ampliação das possibilidades de terceirização e, mais recentemente, a admissão por parte do Supremo Tribunal Federal de repercussão geral no tema, sinalizando uma potencial mudança nos limites (já vulneráveis) da compreensão do Tribunal Superior do Trabalho a respeito. O assunto povoa, ainda, a agenda política da eleição presidencial, com algumas posições amplamente favoráveis à terceirização como estratégia de produção.
É justamente aí que os laços de conexão global se fecham. Permitir-se a ampliação da terceirização significa contribuir diretamente com um modelo de exploração que se constrói na fragmentação, incerteza e precariedade. Os estudos sobre os efeitos negativos da terceirização em todas as esferas da vida humana são muitos, revelando impactos profundamente negativos que vão desde a dificuldade de consolidação da identidade social e emancipação coletiva do trabalhador, altos índices de adoecimento profissional, acidentes e mortes, a vulneração da segurança em geral, até o rebaixamento de padrões salariais e a inviabilização prática da representação coletiva. E nada disso é efeito colateral. É precisamente com base nesses elementos que a terceirização se torna uma bandeira daqueles que querem promover redução de custos, ainda que com base nas mais odiosas violações a direitos humanos. Tudo isso leva a crer que, na linha das estratégias do mundo global da produção, Bangladesh, Brasil ou qualquer outro país podem estar muito mais próximos do que se imagina, a depender dos caminhos institucionais tomados.




[1] Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, com período de estágio doutoral junto ao Collège de France, em Paris. Membro do grupo de pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania. Bolsista CAPES.