Ricardo
José Macedo de Britto Pereira
Subprocurador
Geral do Ministério Público do Trabalho
Colíder
do Grupo de Pesquisa da Faculdade de Direito da UnB
Trabalho, Constituição e Cidadania
Há quase dois séculos, Henri
LACORDAIRE sentenciava que entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre,
entre o senhor e o servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta. Sua denúncia
permanece incrivelmente atual, além de sintetizar, com propriedade, o longo processo
histórico de lutas contra profundas desigualdades e exclusões sociais. As
garantias daí resultantes converteram-se, ao lado das liberdades civis e
políticas, em princípios estruturantes das constituições democráticas na atualidade.
A Constituição brasileira de 1988 é
bastante representativa dessa tendência. Sua inclinação para a proteção social,
incomparável a constituições anteriores, é indissociável e determinante da
identidade nacional, tanto como realidade vivida, quanto como projeto constitucional.
Nesse
contexto, ganha destaque decisão do Supremo Tribunal Federal, no ARE
713.211/MG, que reconheceu repercussão geral em recurso que se volta contra o
entendimento da Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho. A súmula diferencia
atividade meio e fim, com o objetivo de definir os efeitos e as
responsabilidades na prestação de serviços terceirizada. O fundamento da
repercussão geral é a liberdade de contratação, que se extrai da garantia de
que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei (art. 5º, II, CF). Até então, o STF não admitia RE por violação
ao 5º, II, especialmente por meio de argumento tão genérico.
A decisão surpreende na medida em que sugere ser possível extrair do
texto constitucional garantia de liberdade absoluta que anula direitos sociais
expressamente previstos.
O extenso rol de direitos sociais trabalhistas em nossa constituição é
fruto da universalização do Direito do Trabalho e de sua consolidação dogmática.
A conciliação entre trabalho e capital foi possível graças a uma notável fórmula.
O trabalhador é livre para contratar, superando as modalidades de trabalho
forçado. O empresário também o é, assim como para perseguir os resultados da
atividade econômica. Porém, ele assume os riscos e a responsabilidade por
diversas prestações. A vinculação direta entre as partes e a recíproca
dependência entre elas são fundamentais para o êxito dessa construção. Não se
trata de mero intercâmbio de interesses, mas de genuína relação pessoal,
baseada em deveres de lealdade e proteção. O equilíbrio é resguardado pela
organização coletiva e pela intervenção estatal para, ao lado dos ganhos do
empreendimento, assegurar condições dignas de trabalho.
As tensões resultantes do modelo de regulação do trabalho na sociedade nem
de longe ameaçam desestabilizá-lo ou mesmo reconfigurá-lo. Ao contrário, onde
mais consolidado ele se apresenta, mais elevado é o padrão de bem estar social
e maior é o desenvolvimento econômico com estabilidade.
Os valores da relação pessoal de
trabalho reforçam uma dinâmica própria de mercado, baseada na cultura da confiança,
do prestígio e do respeito, que costuma gerar e preservar benefícios para toda
a sociedade. O seu reverso é o capitalismo predatório, orientado pela selvageria
e competição sem limites, que corrompe pessoas e práticas e geram riquezas
concentradas à custa de passivos sociais e econômicos irrecuperáveis. A terceirização aqui se encaixa, ao romper o
vínculo pessoal de trabalho, destruir os seus valores, deslocar a assunção dos
riscos da atividade econômica e a responsabilidade pelas prestações. A terceirização
tende a converter o trabalhador em mercadoria, depreciar o valor do seu
trabalho, utilizá-lo comercialmente e descartá-lo quando obsoleto, por doenças
e inutilidade.
Em nosso país, é esse o lado
perverso da terceirização que vem se revelando, com altos índices de acidentes
de trabalho e formas cruéis de exploração dos trabalhadores. Essa prática
degrada o Direito do Trabalho, apesar de aparentemente aplicá-lo. No momento, a
Súmula nº 331 do TST representa o avanço possível que procura impedir a
generalização dos efeitos nocivos da terceirização.
É cedo para prognósticos sobre o resultado do julgamento do recurso
extraordinário. A pergunta que está lançada é se vai prevalecer a Constituição,
com a força de seus dispositivos em prol da dignidade da pessoa humana, ou a lex mercatoria, que converte tudo e
todos em instrumento para a riqueza de poucos. Neste último caso, numa inversão
do preciso diagnóstico de LACORDAIRE, seria anunciado: entre o trabalhador e o
empresário é a proteção constitucional que oprime e a terceirização que
liberta. Um retrocesso desastroso!
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