terça-feira, 9 de outubro de 2018

Ingresso do Grupo de Pesquisa como amicus curiae na ADI 5826 no STF

O Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania" (UnB/CNPq) tem a honra de comunicar a toda a comunidade a publicação, na data de hoje (09/10/2018), de decisão do Exmo. Ministro Edson Fachin admitindo o ingresso da entidade como amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5826/DF, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, a fim de auxiliar nas discussões relativas à compatibilidade do contrato de trabalho intermitente, introduzido pela Lei 13.467/2017, com a Constituição Federal.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

10° Congresso Goiano de Advocacia Trabalhista




Evento: Os 30 anos da Constituição e o Ministério Público do Trabalho


"STF se alinhou a setores que querem a volta da escravidão", diz Ricardo Antunes

Para o sociólogo, terceirização da atividade fim, aprovada pelo STF, é uma derrota sem precedentes para os trabalhadores

Brasil de Fato | São Paulo (SP)
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Antunes é autor do livro “O privilégio da servidão”, publicado pela Boitempo, em que analisa os impactos da terceirização na sociedade / Foto: Antonio Perri/Boitempo
“É uma tragédia social”, define Ricardo Antunes, sociólogo, professor livre-docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos principais nomes no país que analisam o mundo do trabalho, sobre decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou a terceirização irrestrita constitucional. 
A decisão foi tomada pelo Supremo na última quinta-feira (30). Votaram pela terceirização irrestrita os ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux (relatores), Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cármen Lúcia. Posicionaram-se contra Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello. 
Em entrevista ao Brasil de Fato, Antunes ressalta que, ao liberar a terceirização, independentemente de setor ou atividade, o STF atende os desejos dos representantes patronais.
“A partir dessa nefasta decisão do Supremo, todas as atividades podem ser terceirizadas. É uma derrota fragorosa da classe trabalhadora e mostra que Supremo Tribunal Federal está em plena sintonia com os interesses mais destrutivos das classes proprietárias”, afirma o sociólogo. 
“Por que a terceirização interessa? Primeiro, os trabalhadores terceirizados ganham menos. Segundo, trabalhadores e trabalhadoras terceirizados trabalham mais horas por dia, ou seja, a intensidade do trabalho, a exploração e a superexploração do trabalho, são mais intensificados. Terceiro, e isto é vital: terceirizar significa dividir a classe trabalhadora”, argumenta. 
Recentemente, Antunes lançou o livro “O privilégio da servidão”, publicado pela Boitempo, em que analisa os impactos da terceirização na sociedade e na vida dos trabalhadores.
Confira entrevista na íntegra:
Brasil de Fato – O que representa a decisão do STF que libera a terceirização irrestrita? A quem ela beneficiará?
Ricardo Antunes – A decisão do STF ajuda a consolidar a devastação das relações de trabalho iniciada de modo agudo nesse último período, pelo governo [Michel] Temer. Consolida o processo de conversão nas relações de trabalho no Brasil, em que a legislação social protetora do trabalho perde aquele sentido que ela tinha de minimamente regular e preservar direitos dos trabalhadores.
Nós entramos, agora, na lei completa da selva. Mais do que isso, há um Supremo Tribunal Federal sem competência jurídica para analisar os temas do trabalho. Só alguns dos ministros do Supremo têm formação em Direito do Trabalho e muitos lá são verdadeiros representantes do Capital. Aliás, a ampla maioria, com raras exceções, se é que elas existem. Com esta medida, passam por cima do Tribunal Superior do Trabalho, a quem competia definir o que era a terceirização, onde ela era possível e onde ela não era possível, como o Tribunal fez há quase uma década atrás quando permitiu a terceirização das atividades-meio e proibiu a terceirização das atividades-fins.
A partir dessa nefasta decisão do Supremo, todas as atividades podem ser terceirizadas. É uma derrota fragorosa da classe trabalhadora e mostra que o Supremo Tribunal Federal está em plena sintonia com os interesses mais destrutivos das classes proprietárias. Todas as pesquisas mostram que trabalhadores e trabalhadoras terceirizados trabalham mais tempo, ganham menos, sofrem mais acidentes de trabalho, tem a realização social protetora do trabalho burlada, não tem representação sindical e não tem condições sequer econômicas para entrar e batalhar pelos seus direitos na Justiça. É uma tragédia social que nos faz lembrar 1800, o período anterior a 1888. O STF se alinhou com o governo Temer e com setores dominantes do Brasil que querem a volta à escravidão.
Qual sua opinião sobre o argumento da eficácia produtiva, utilizado pelos ministros, para defender a terceirização irrestrita?
O discurso da chamada eficiência produtiva utilizada pelos ministros é uma forma envergonhada de discutir esse tema, porque eles não tem coragem de dizer que a terceirização é um flagelo para classe trabalhadora. A terceirização é romper os direitos. Os terceirizados e as terceirizadas trabalham, frequentemente, sem representação sindical, eu enfatizo isso porque a história da representação sindical dos terceirizados no Brasil é praticamente inexistente, é muito pequena, muito mais difícil, o que faz com que haja uma brutal retirada de direitos. 
Há um conjunto imenso de trabalhadores e trabalhadoras terceirizados que nos seus depoimentos não tiram férias há mais de um ano, dois ou três anos. O terceirizado, por exemplo, não pode se dar ao luxo de tirar férias, porque a rotatividade é muito alta. Os salários são baixos, as jornadas extenuantes. Acidentes e mortes são muito frequentes em atividades como eletricitários, aqueles que trabalham nas mineradoras, aqueles que trabalham nos bancos, nas unidades da Petrobras de perfuração de petróleo, entre outras. Esse discurso esconde a retirada dos direitos e é uma forma de abafar a monumental precarização do trabalho.
Os favoráveis à terceirização usam o argumento de que há relação entre o crescimento de emprego formal e terceirização, enquanto movimentos sociais denunciam uma precarização. Qual sua avaliação, enquanto especialista?
Os que alegam que há relação entre o crescimento de emprego formal e a terceirização, desconsideram todas as pesquisas sérias que mostram, em primeiro lugar, que o crescimento do emprego formal depende muito mais do movimento da economia, das medidas tomadas pelos governos visando um maior incentivo ao crescimento ou um maior incentivo ao superávit primário para garantir os lucros dos bancos, como o governo Temer está fazendo e tantos outros governos anteriores a ele também fizeram, ainda que de modo diferenciado.
O que na verdade todas as pesquisas mostram é que a terceirização não aumenta emprego. O aumento de emprego, repito, decorre do movimento da economia. A terceirização aumenta, em situações de crise, porque ela significa o aumento da exploração da classe trabalhadora brasileira, que no nosso caso tem traços de superexploração do trabalho. O Supremo Tribunal Federal legitimou a prática da superexploração do trabalho no Brasil, que atinge de maneira exponencial os trabalhadores rurais, os trabalhadores operários das Indústrias, os trabalhadores dos serviços, trabalhadores da agroindústria, serviços industriais e da indústria de serviços. Ou seja, é uma derrota da classe trabalhadora. 
A grande verdade é que os movimentos sociais, quando denunciam que a terceirização gera precarização, é porque eles vivem a concretude disto na sua vida real. Os trabalhadores e as trabalhadoras sabem que, sendo terceirizados, a burla de direitos é maior, os salário são menores e as jornadas mais extensas. 
Como o senhor analisa que será a fiscalização desses contratos na fiscalização irrestrita?
Uma farsa. A fiscalização desses contratos será uma farsa. Se os terceirizados não têm sindicatos fortes, já perdem, desde logo, o seu instrumento principal de fiscalização, são os sindicatos que denunciam. A introdução da terceirização é o golpe final, o golpe letal, que faltava a ser dado na CLT. Alguém imagina que um Estado como o do Temer vai fiscalizar isto? 
Por que a terceirização interessa? Primeiro, os trabalhadores e terceirizados ganham menos. Segundo, trabalhadores e trabalhadoras terceirizados trabalham mais horas por dia, ou seja, a intensidade do trabalho, a exploração e a superexploração do trabalho, são mais intensificados. Terceiro, e isto é vital: terceirizar significa dividir a classe trabalhadora.
Existem os trabalhadores que ainda tem direitos celetistas, que são regulamentados pela CLT, e conseguem se manter, e uma massa crescente de trabalhadores a margem da CLT, o que significa que nós vamos ter um cenário muito difícil para a classe trabalhadora. É preciso que um outro governo, eleito, resultado de lutas sociais, de avanços da classe trabalhadora, dos movimentos sociais, da luta cotidiana do povo que trabalha, da classe que vive do seu trabalho, que coloque como uma questão vital a revogação da lei de terceirização, a revogação da reforma trabalhista do Temer e a revogação da PEC do fim do mundo, que jogou a saúde pública, a previdência pública e a educação pública para a vala comum, de tal modo que a população pobre brasileira, que é a maioria da nossa classe trabalhadora, não tem condições mínimas de saúde, educação e previdência. Isso só mostra que a institucionalidade brasileira está profundamente maculada pelos interesses corporativos de financeiros que a controlam. Seja o Executivo, seja o Legislativo ou o Judiciário.
É por isso que a população tem uma repulsa, ainda que seja uma repulsa surda. A população trabalhadora olha com desdém para esta institucionalidade brasileira porque ela é prisioneira dos valores dominantes. É triste, mas essa é a mais pura realidade. O Supremo Tribunal Federal perdeu uma rara oportunidade, e evidentemente a expectativa de que isso ocorresse era praticamente nenhuma porque quem acompanha o Supremo sabe que ele tem agido de modo muito minúsculo quando as grandes forças impõe que as decisões sejam tomadas. A grande consequência de tudo isso é o retorno a uma situação que em pleno século 21 legaliza a escravidão do trabalho. 
Qual a perspectiva que se desenha para os trabalhadores na atual conjuntura, a partir da aprovação da reforma trabalhista e agora com a terceirização irrestrita?
A pior possível. Será preciso refazer o que a classe trabalhadora fez ao longo do século 20. Greves, como houve a Greve Geral de 1917, greves ao longo dos anos 30 e 35, greves nos anos 45, 46 e 47. Greves nos anos 53, 57, 60, 61, 62, 63, 68, 78, 79 e 80. Greves, lutas sociais, confrontação. É só assim que nós poderemos repor, em alguma medida, essa devastação, esta conversão do trabalho da forma mais aviltada que a história brasileira presenciou e vai presenciar, desde o fim do trabalho escravo.
Que papel o STF tem desempenhado nessas votações que impactam diretamente a vida dos trabalhadores?
[O papel] de ser, como o Executivo e o Legislativo, um guardião. Um guardião dos interesses dos grandes grupos dominantes. Um guardião dos interesses das grandes corporações. Esta medida foi um divisor de águas.
Um ministro ou ministra dizendo que a terceirização é a forma de aumentar o trabalho, é porque jamais viram a vida cotidiana que as trabalhadoras sofrem. É muito importante ter claro: na terceirização, há uma enorme intensificação da exploração do trabalho. Há, na verdade, uma superexploração do trabalho, e ela atinge mais duramente as mulheres, porque os seus salários são ainda menores do que aqueles recebidos pelos homens terceirizados. As mulheres negras têm salários menores do que os salários das mulheres brancas e menor do que o salário dos homens ou seja estamos num degrau que está nos levando a um abismo social. 
Isto vai, por certo, significar consequências muito profundas na dilapidação ainda maior da alimentação da classe trabalhadora, da saúde da classe trabalhadora, do seu sofrimento, mas, por certo, vai gerar também revolta porque nenhuma sociedade vive em condições de escravidão sem, em algum momento, aumentar a intensidade das revoltas.
Edição: Diego Sartorato
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terça-feira, 4 de setembro de 2018

Terceirização sem limites: a crônica de uma tragédia social anunciada

Perspectivas de aprofundamento das desigualdades sociais e empobrecimento dos trabalhadores são óbvias
Durante o julgamento, restaram polarizadas duas teses: a tese derrotada, lastreada em estudos científicos do campo do Direito Constitucional do Trabalho, da Sociologia do Trabalho e da Economia do Trabalho no sentido de afirmar a proteção social ao trabalho e limitar a terceirização como mecanismo jurídico para evitar a precarização que esta engendra, num conteúdo argumentativo que afirma o caráter social da Constituição de 1988; e a tese vencedora, propaladora da “modernização da economia”, da liberdade de contratação e da promessa de criação de empregos, capitaneada pela maximização das liberdades de iniciativa extraídas do art. 5º, II, da Constituição de 1988 (princípio da legalidade). Os defensores da corrente vencedora entendem que os efeitos precarizantes levantados pelos demais julgadores seriam externalidades e não contingências do processo de terceirização, devendo ser reprimidos os efeitos nocivos, porém não a terceirização em si.
O julgamento realizado pelo STF não se referia à nova legislação trabalhista, advinda das Leis nº 13.429/2017 e 13.467/2017, mas sim às situações anteriores à vigência dessa normatividade. Interessante, todavia, não ter constado do julgamento que o resultado que ali se discutia, em certa medida, antecipava os efeitos liberalizantes introduzidos na ordem jurídica pela denominada reforma trabalhista, que também previu a terceirização de atividades fins e meio, indistintamente.
São amplamente conhecidos os efeitos precarizantes da terceirização do trabalho, que já foram vastamente mapeados por pesquisas científicas dos mais diversos campos do conhecimento1. Os impactos da contratação terceirizada no patrimônio jurídico dos trabalhadores, bem como os prejuízos por esta causados à saúde do trabalhador, à afirmação de identidade social no trabalho, à organização coletiva dos trabalhadores e ao fortalecimento dos seus processos negociais são reiteradamente confirmados por pesquisas científicas. as quais restaram referidas nos votos condutores da tese vencida no julgamento.
É nesse sentido a constatação de que o Direito não pode fechar os olhos à realidade, que deve ser compreendida como parte constitutiva do próprio Direito. Assim, Delgado e Amorim já apresentaram a compreensão de que, embora formalmente não suprima direitos trabalhistas, a terceirização já se mostrou suficiente para torná-los rarefeitos, na medida em que reduz sua importância econômica e sua exequibilidade, distanciando o trabalhador da unidade produtiva que por ele deveria se responsabilizar2.
Ao contrário do que sustentaram alguns ministros, a garantia de direitos sociais não se materializa num processo formal e abstrato de reconhecimento de direitos, mas na concretude dos processos de cidadania e inserção social que o trabalho regulado proporciona. Esse trabalho, certamente, não é o trabalho terceirizado, assim como direitos fundamentais e democracia não são formas vazias, mas precisamente um conteúdo jurídico-político firmado por meio do pacto democrático de 1988.
Não foi esse o entendimento acolhido pelo STF, que capitaneia, mais uma vez, a tese menos protetiva do caráter social da Constituição de 1988. A pergunta que fica é: se diante dos limites colocados pela Súmula nº 331 do TST, já era difícil conter o avanço da precarização e da intermediação fraudulenta de mão de obra nas relações de trabalho, o que podemos esperar do cenário do trabalho no país a partir do momento que o STF autoriza a prática da terceirização de todas as atividades empresariais? O que dizer do advento dessa decisão, em um contexto de crise econômica, no qual a ordem do mercado tem sido o corte de custos independentemente do que esses custos representem?
As perspectivas de aprofundamento das desigualdades sociais e empobrecimento dos trabalhadores são óbvias. A lista de “coincidências” é grande e, por si só, faz concluir pela inexistência de “acaso”, mas sim de uma causalidade inevitável entre os fenômenos da terceirização e da precarização: estamos falando de salários menores, jornadas mais extensas (e intensas), maior rotatividade no mercado de trabalho, mais acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, mais ocorrências de redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo, mais ocorrências de trabalho infantil, menores taxas de sindicalização e mais fragilidade nos processos negociais coletivos.
Entretanto, mais do que as evidências sociais concretas dos efeitos desse arranjo contratual precário e do comprometimento que advém à Ordem Constitucional de 1988 a partir da última decisão do STF, algumas perguntas imediatas surgem quando os profissionais do Direito se colocam diante do desafio de aplicar a decisão (vinculante) do Supremo Tribunal Federal. É que a terceirização interfere em pressuposto basilar do Direito do Trabalho brasileiro – a relação bilateral de emprego. Uma vez afastada essa base, que passa a poder ser subvertida pela generalização da contratação trilateral, inúmeras perguntas que a tese vencedora no STF não se ocupou em responder se colocam para o Direito do Trabalho após o dia 30/8/2018.
Quando o Supremo autoriza a terceirização das atividades-fim das empresas tomadoras, levantando o obstáculo específico colocado pela Súmula nº 331 do TST, o que nos diz sobre a vigência dos artigos 2º e 3º da CLT? Sim, aqueles dispositivos que estabelecem os pressupostos fático-jurídicos para a configuração da relação de emprego, os quais devem ser aferidos a partir da primazia da realidade, princípio basilar do Direito do Trabalho. Caso terceirizada uma atividade-fim, e, diante dela, sejam identificados, entre o trabalhador contratado de forma terceirizada e a empresa tomadora de serviços, a presença de pessoalidade e subordinação jurídica ao tomador de serviços, deverá o intérprete do Direito afastar o efeito concreto dos artigos 2º e 3º da CLT, que é o reconhecimento do vínculo empregatício direto? E, em caso afirmativo, quais passam a ser então os critérios para aferição da existência da relação de emprego? Difícil sustentar o edifício do Direito do Trabalho, quando solapam o seu alicerce, sem colocar nada no lugar…
Outro ponto que foi desconsiderado na decisão do Supremo diz respeito à possibilidade de fraude nas relações terceirizadas, com a dinâmica de intermediação da força de trabalho obreira. Importante lembrar que desde o processo de institucionalização do Direito do Trabalho, nas primeiras décadas do Século XX (com a Constituição da OIT de 1919 e a Declaração de Filadélfia de 1944, por exemplo), há proibição da intermediação de mão de obra, segundo o princípio de que “o trabalho não é uma mercadoria”. Por certo, a terceirização de atividade-fim mercantiliza o trabalho humano, por se apresentar como uma relação de trabalho desprovida de proteção normativa, aproximando realidades de fraude e de trabalho regulado. Nesse contexto, qual seria então o papel que a decisão do STF atribuiria ao art. 9º da CLT? Para além disso, em respeito ao domínio de proteção da pessoa humana, como se cumpriria a força supralegal dos tratados de direitos humanos em matéria trabalhista nos casos de fraude com intermediação de mão de obra?
Mais importante, considerando que o enquadramento sindical em nosso país é eleito pela atividade econômica do empregador e que não existe liberdade sindical plena (uma vez que o princípio da unicidade persiste afirmado no art. 8º, I, da CF/88), como se dará o enquadramento sindical da massa de terceirizados que passará a existir após essa decisão? Teremos um sindicato geral dos terceirizados no Brasil, com força para negociar com todos os ramos de atividade econômica? Ou o Supremo assumirá, como desdobramento do seu julgado, a necessidade de concretizar a liberdade sindical plena no país, nos termos da Convenção nº 87 da OIT, e autorizará que os trabalhadores terceirizados elejam o sindicato mais representativo ao qual desejem se filiar? Ou, ainda, se filiarão os trabalhadores terceirizados ao sindicato dos empregados da empresa tomadora de serviços? Qual sindicato terá legitimidade para conduzir negociações coletivas (inclusive com aptidão para rebaixar direitos trabalhistas, na esteira da jurisprudência do próprio STF, como demonstra o RE 590.415, da Relatoria do ministro Luís Roberto Barroso) em nome da nova massa de trabalhadores terceirizados?
Que dirá o Supremo Tribunal Federal das dispensas coletivas de empregados contratados diretamente para recontratação de outros trabalhadores, de forma terceirizada? Note-se que em tempos de crise, o tema das dispensas coletivas tem batido às portas do Poder Judiciário trabalhista, que teve sua jurisprudência civilizatória confrontada pelo liberalizante art. 477-B inserido na CLT pela Lei nº 13.467/2017. Se o objetivo do STF era garantir empregos, como solucionará esse conflito? Enfrentará as dispensas coletivas que a sua própria decisão pode inspirar?
O que dirá o Supremo quando a legitimação de empresas que não assumem os riscos inerentes ao exercício da sua atividade econômica começar a causar instabilidades concorrenciais e problemas consumeristas, desestabilizando ainda mais a economia? Isso porque, na esteira do entendimento de Calixto Salomão Filho, na terceirização não há coincidência entre os centros jurídicos de imputação de responsabilidade e risco pelo desempenho independente da atividade. Arremata o autor que todo agente econômico que atua no mercado sem assumir riscos/responsabilidades configura risco ao próprio funcionamento das relações concorrenciais do sistema capitalista e da sociedade3.
O STF, na decisão de 30/8/2018, infelizmente não ofereceu respostas, nem pacificou conflitos, tampouco trouxe segurança jurídica. Abre caminho para um período de incertezas jurídicas que terá que ser respondido por meio de profunda reconstrução dos pilares de proteção ao trabalho no Brasil. Abre caminho ainda para o aprofundamento de processos de precarização que a exploração ilimitada do trabalho engendra e coloca em xeque um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, do qual deveria ser defensor: a valorização social do trabalho.
A construção jurídica nacional terá que aprender, por meio de um remédio amargo, que não é possível interpretar a “valorização social do trabalho” como um enunciado retórico de uma ordem jurídica que, na verdade, é regida por imperativos econômicos. Relembraremos, a duras penas, que os limites do Direito e da Economia são colocados em diferentes searas justamente porque aquilo que o Direito pode assegurar em termos de padrões civilizatórios, democracia e preservação de garantias fundamentais, não pode ser oferecido pelas meras movimentações econômicas. Será preciso experimentar o empobrecimento de quem trabalha para entender, como afirma Laura Carvalho, que “A proteção aos mais vulneráveis sempre pode caber no orçamento, mas o genocídio jamais caberá na civilização”4.
Por fim, é importante registrar que as reflexões que movem esse artigo, embora lastreadas em preocupações de natureza econômica e sociológica profundas que emanam do compromisso com a realidade social brasileira, tem assento exatamente na leitura atenta e técnica da Constituição Federal, que não pode ser interpretada pinçando-se o art. 5º, II, como se ele não estivesse inserido num sistema jurídico conformado pelos artigos 1º, III e IV, 3º, 6º, 7º a 11, 170, § 1º, III, da Constituição, que se compromete equanimemente com a dignidade humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o combate às desigualdades sociais e regionais, a justiça social, a busca do pleno emprego e a função social da propriedade.
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1 ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018; COUTINHO, Grijalbo Fernandes. Terceirização: máquina de moer gente trabalhadora. São Paulo: LTr, 2015; DELGADO, Gabriela Neves; AMORIM, Helder. Os limites constitucionais da terceirização. São Paulo: LTr, 2014; DELGADO, Maurício Godinho Delgado. Curso de direito do trabalho. 17ª ed. São Paulo: LTr, 2018; DRUCK, Graça. Trabalho, Precarização e resistências. Caderno CRH. Salvador: EDUFBA, v. 24, p. 35-54, 2011; DRUCK, Graça; BATISTA, Jair. Precarização, Terceirização e ação sindical. In: DELGADO, Gabriela. PEREIRA, Ricardo. Trabalho, Constituição e Cidadania. São Paulo: LTr, 2014. Pp. 31-45; DUTRA, Renata Queiroz. Trabalho, regulação e cidadania: a dialética da regulação social do trabalho. São Paulo: LTr, 2018; PAIXÃO, Cristiano; LOURENÇO FILHO, Ricardo. Impactos da terceirização no mundo do trabalho: tempo, espaço e subjetividade. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho. vol. 80, nº 3, jul/set 2014, p. 58-74; TEIXEIRA, Marilane Oliveira; ANDRADE, Helio Rodrigues de; COELHO, Elaine Dávila (Orgs.). Precarização e terceirização: faces da mesma realidade. 1ed.São Paulo: Sindicato dos Químicos, 2016, v. 1, entre outras relevantes pesquisas.
2 DELGADO, Gabriela Neves; AMORIM, Helder. Os limites constitucionais da terceirização. São Paulo: LTr, 2014.
3 Palestra proferida por Calixto Salomão Filho, professor Titular de Direito comercial e concorrencial da USP, em 7/11/2014, no Seminário Internacional “Direito do Trabalho e Sindicalismo: Dilemas e Desafios Atuais na Europa, América Latina e Brasil”, na cidade de São Paulo – SP. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Bqe3etgctMk Acesso em 2/9/2018, 20h36min.
4 CARVALHO, Laura. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Ed. Todavia, 2018, p. 160.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Terceirização sem limites: crônica de uma tragédia social anunciada



Neste 30 de agosto, ao entender pela constitucionalidade da terceirização trabalhista sem limites, o Supremo Tribunal Federal abre margem para um grave cenário social, que já fora objeto de alerta dos pesquisadores do mundo do trabalho. A decisão em questão, que chancela a terceirização em todas as atividades, desconsidera os limites trazidos pela Constituição Federal de 1988, tanto em relação à liberdade de iniciativa do empregador, quanto ao dever estatal de proteção aos direitos fundamentais dos trabalhadores; rompe com a lógica de afirmação do Estado Democrático de Direito, em direta afronta à dignidade do trabalho humano; fragiliza a integridade do Direito do Trabalho e abre caminho para a ampliação de novas fraudes à relação de emprego, cujos desdobramentos devem ser acompanhados com cautela por todos os agentes sociais. O Grupo de Pesquisa “Trabalho, Constituição e Cidadania” lamenta a decisão pronunciada e reafirma o seu compromisso de acompanhar, refletir, problematizar e propor caminhos para combater  a precarização do trabalho.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Aviso: mudança da data de início dos encontros presenciais do Grupo de Pesquisa

Aviso

O Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania" (UnB/CNPq) vem comunicar o adiamento do primeiro encontro presencial deste semestre para a próxima quinta-feira, dia 23 de agosto de 2018, das 19h às 22h, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
Dessa forma, fica cancelada a reunião previamente agendada para o dia 16/08/2018.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Retomada dos encontros presenciais do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania

Aviso

Os encontros presenciais do Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania" (UnB/CNPq) serão retomados juntamente com as aulas da Pós-graduação, no dia 16 de agosto de 2018, e ocorrerão nesse semestre sempre às quintas-feiras, das 19h às 22h, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Divulgação: defesa de qualificação de doutorado da pesquisadora Maria Cecília Lemos

O Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania" (UnB/CNPq) convida toda a comunidade acadêmica para a defesa de qualificação de doutorado da pesquisadora Maria Cecília de Almeida Monteiro Lemos.


domingo, 10 de junho de 2018

Dia mundial e nacional de combate ao trabalho infantil

Campanha importantíssima para o dia 12 de junho: dia mundial e nacional de combate ao trabalho infantil! O Grupo de Pesquisa “Trabalho, Constituição e Cidadania” parabeniza as instituições parceiras envolvidas na campanha e cumprimenta todos aqueles que trabalham cotidianamente para erradicar o trabalho infantil.




terça-feira, 29 de maio de 2018

Reforma trabalhista: Brasil está na lista dos 24 casos mais graves que OIT investigará por violação a normas internacionais do trabalho

Decisão do Comitê de Peritos foi tomada na 107ª Conferência da OIT, que acontece em Genebra
O Comitê de Peritos da OIT analisou a atual condição legislativa brasileira e concluiu que dispositivos da Lei nº 13.467/2017 (“reforma trabalhista”) representam graves violações a normas de proteção internacional com as quais o país se comprometeu. O Brasil é país integrante da OIT desde a sua criação, em 1919, sendo compromissário das regras que são construídas a partir do diálogo internacional tripartite, entre representações de trabalhadores, empregadores e governos. Todavia, não as observou, conforme conclusão dos peritos.

Entenda o caso. 
Ano a ano é divulgada uma lista, conhecida como “long list”, de casos que o Comitê de Peritos considera graves e pertinentes para solicitar, dos Estados-membros envolvidos, uma resposta oficial completa, antes de lançar seus relatórios acerca do cumprimento de determinadas normas internacionais. O Brasil figurou na “long list” em 2017, em razão da tramitação do então PL 6.787/2016 (reforma trabalhista). Ao final, porém, o caso não foi incluído na “short list” – ou seja, dentre os 24 casos considerados mais graves para apreciação no decorrer da Conferência Internacional –, basicamente porque o projeto de lei ainda não era definitivo e seguia tramitando no Congresso Nacional. Ali já se via, entretanto, uma sinalização forte quanto à necessidade de o país reafirmar o seu compromisso com as agendas do trabalho decente, o que inclui a observância das normas básicas de proteção à pessoa trabalhadora. O “caso Brasil” continuou sendo monitorado internacionalmente.

No início deste ano, o Brasil voltou para a “long list” (dentre os mais de 40 casos graves selecionados), desta vez com observações bastante claras quanto à aparente inconvencionalidade de dispositivos que estão na Lei 13.467/2017. Havia muita expectativa sobre se, no decorrer da Conferência, o Brasil passaria a ser incluído na “short list”, compondo o desonroso grupo dos países suspeitos de incorrerem nas mais emblemáticas violações do Direito Internacional do Trabalho em todo o planeta. Foi o que agora ocorreu, conforme decisão do Comitê de Aplicação de Normas Internacionais. O Comitê é um órgão independente composto por peritos jurídicos de diversos países, encarregados de examinar a aplicação das convenções e recomendações da OIT no âmbito interno dos Estados-membros. Com a decisão desta terça-feira, o Brasil está oficialmente na lista dos 24 piores casos selecionados para a discussão individual ao longo da Conferência, o que trará desgaste político internacional à representação do Governo.

“Short list” 
e violações do Direito Internacional do Trabalho. Após as ponderações preliminares de trabalhadores, empregadores e diplomatas brasileiros, o Comitê de Peritos apontou problemas relacionados sobretudo ao cumprimento dos termos da Convenção nº 98 (direito de sindicalização e de negociação coletiva), por ter identificado indícios de fomento legislativo a um tipo de negociação coletiva tendente a reduzir ou retirar direitos sociais, subvertendo a sua finalidade natural. A conclusão dos peritos aponta, portanto, para a necessidade de revisão dos arts. 611-A e 611-B da CLT, entre outros, na perspectiva de que não é viável preordenar negociação coletiva para redução ordinária de direitos ou diminuição de garantias, e tanto menos negociação direta entre trabalhador e empregador, sem intervenção sindical, para esse mesmo fim. Outra revisão fundamental sinalizada diz respeito ao art. 442 da CLT que, ao estimular contratos precários – o de “autônomos exclusivos” –, formalmente desvinculados de categorias profissionais, tende a excluir os respectivos trabalhadores das salvaguardas sindicais típicas reconhecidas na legislação.

A visão da Anamatra -  
O presidente da Anamatra, Guilherme Feliciano, observou que “a notícia consterna, mas não surpreende. A Anamatra alertou, desde o início da tramitação do PL  6.787/2016, para os riscos de uma alteração legislativa tão restritiva – e tão mal construída – sem o necessário diálogo com a sociedade civil organizada”. 
Já a vice-presidente da Anamatra, Noemia Porto, que participa da Conferência representando a entidade, viu com preocupação a inserção do Brasil na lista.“Não há dúvida de que fica abalada a credibilidade do país no plano internacional, porque até então vinha sendo construída uma imagem positiva de compromisso com a cidadania, incluindo o respeito aos direitos dos trabalhadores. Isso foi rompido”. A preocupação com o crescimento sustentável, que alie valor social do trabalho e livre iniciativa, é um compromisso estampado na Constituição do Brasil, diz. As inconvencionalidades inerentes à ideia de negociação coletiva com redução de direitos, de negociação direta entre trabalhador e empregador e de proliferação de contratos precários foram antecipadas pela Anamatra desde a tramitação do projeto de lei da reforma trabalhista, tanto nas notas técnicas publicadas como nas participações em audiências públicas. As inconstitucionalidades e inconvencionalidades da Lei nº 13.467/2017 também apareceram nas teses recentemente foram aprovadas no XIX CONAMAT, principal evento da Magistratura do Trabalho brasileira. (Confira aqui a lista das teses)
Luciana Conforti, diretora de Cidadania e Direitos Humanos, que também participa da 107ª Conferência, acrescentou que a ANAMATRA já vinha documentando os impactos negativos da reforma trabalhista aferidos nos últimos 6 meses, dentre os quais as ameaças à independência judicial dos magistrados – pressionados publicamente por autoridades públicas para dedicarem ao texto legal interpretações de ordem literal –, a drástica redução do número de ações trabalhistas – diante das restrições impostas para o acesso à justiça, inclusive de trabalhadores pobres –, as demissões em massa associadas ao aumento da informalidade e da formalização de contratos precários e a crise no modelo de custeio das atividades sindicais. Para a diretora, a inclusão do Brasil na lista dos 24 piores casos ocorre como consequência da quebra dos princípios fundamentais do diálogo social e da negociação coletiva, que deve visar à melhoria das condições de trabalho. Na data de ontem a Anamatra protocolou ofício de caráter informativo, endereçado ao Diretor-Geral, versando sobre os aspectos acima referidos. 
Luciana Conforti referiu, por fim, que a Anamatra, considerando os tradicionais laços de cooperação norteadores de suas relações com a OIT há mais de uma década, já havia reportado ao Diretor-Geral Guy Rider quais eram os riscos da aprovação da reforma trabalhista como proposta, conforme ofício protocolado pela entidade no decorrer da 106ª Conferência Internacional do Trabalho. 
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Fonte: ANAMATRA

terça-feira, 22 de maio de 2018

Segunda edição do livro “A Reforma Trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017”


O Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania" (Unb/CNPq) tem a honra de divulgar a segunda edição do livro “A Reforma Trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017”. Revista, atualizada e ampliada.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Evento: Simpósio “A proteção da criança e do adolescente frente ao trabalho infantil: atuação necessária como garantia ao direito à vida”


O Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania" tem a honra de divulgar à comunidade acadêmica o simpósio “A proteção da criança e do adolescente frente ao trabalho infantil: atuação necessária como garantia ao direito à vida”.

O evento será realizado nos dias 12 e 13 de junho, no auditório Pedro Jorge I da ESMPU (quadra 604 – L2 Sul – 1º subsolo), e contará com 50 vagas para público externo, preenchidas por sorteio eletrônico.

As inscrições poderão ser realizadas aqui, até as 12h do dia 9 de maio, e será concedido certificado aos participantes com frequência mínima de 85%.

Confira abaixo a programação completa do simpósio:

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Artigo: "30 anos: crise e futuro da Constituição de 1988"

Podemos identificar dois desfechos possíveis para a crise constitucional desencadeada em 2016
Cristiano Paixão

presente artigo inicia uma série dedicada aos 30 anos da Constituição de 1988. Entendemos ser relevante um esforço de reflexão acerca do legado do texto constitucional e dos desafios que se colocam para a sua vigência no futuro. Este espaço será compartilhado por professores e pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (UnB – Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição), por componentes do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e por pesquisadores convidados.
A Constituição está prestes a completar 30 anos de vigência exatamente num contexto histórico em que o Brasil experimenta sua maior crise constitucional desde 1988. É necessário, então, compreender as dimensões da crise, as perspectivas para o futuro e as alternativas disponíveis.
O conceito de crise já perdeu muito de seu componente de excepcionalidade. A gradativa normalização do conceito – fala-se a todo momento em crise política, crise econômica, crise de valores, crise da civilização – tem duas consequências: uma espécie de banalização da ideia de crise e uma certa opacidade do conceito. Nem sempre é fácil separar o normal do extraordinário; aumenta o uso da noção de “crise estrutural”, que por si só desafia a excepcionalidade da situação de crise e permite antever que o mundo político e institucional moderno contempla essa ideia desde suas primeiras manifestações. Em outras palavras: viver sob o desenho institucional construído a partir da modernidade significa estar sujeito a constantes crises. Uma delas é a crise constitucional.
É natural – e até previsível – que as democracias contemporâneas vivam, de tempos em tempos, situações de incerteza e instabilidade. A princípio, as constituições são soluções para as crises políticas – elas indicam o espaço de atuação dos poderes constituídos, estabelecem limites e formas de controle entre poderes. Entretanto, em determinadas circunstâncias, as crises políticas podem levar a uma crise constitucional.
Isso ocorre quando se manifesta a ampliação do espaço de deliberação disponível, com base na constituição então vigente, aos atores e instituições da política e do direito. A crise política assume, assim, uma dimensão constitucional. Ela inclui uma crise da função da constituição, ou seja, a crise apresenta-se quando a constituição é colocada à prova, e os procedimentos ordinariamente disponíveis para o enfrentamento de impasses e discordâncias não são suficientes para resolver o impasse político. Ao persistir a situação de conflito, novas possibilidades são cogitadas e testadas por atores e instituições. Com isso, abre-se o risco de que a solução proposta atinja o núcleo da constituição da comunidade política, a saber, alguma das opções fundamentais contidas no documento constitucional.
A crise constitucional em que estamos inseridos, e que ficou evidenciada cerca de dois anos atrás, ao tempo do procedimento de impeachment da então presidente da República Dilma Rousseff, tem uma característica distintiva: ela é uma crise desconstituinte. Desde 2016, algumas ações adotadas pela coalizão política que se formou para viabilizar o impeachment e sustentar o governo Temer possuem um núcleo comum: a deliberada desfiguração do quadro de direitos fundamentais que é o núcleo da Constituição de 1988.
A promulgação da Emenda Constitucional nº 95, que fixa um teto para os gastos públicos, assim como a aprovação da Lei nº 13.467/2013, a chamada “reforma trabalhista”, são exemplos concretos de um movimento de reação contra a Constituição de 1988, pois subtraem, de forma clara e direta, o direito das próximas gerações de deliberar sobre as modalidades de gasto dos recursos públicos (inviabilizando a concretude de direitos e garantias estipulados ao longo do texto constitucional), e flexibilizam ao extremo o núcleo da proteção social ao trabalhador que a Constituição de 1988 estabeleceu com inegável centralidade.
Podemos identificar, entre várias possibilidades, dois desfechos possíveis para a crise constitucional desencadeada em 2016. O primeiro deles é um gradativo esvaziamento da Constituição de 1988 que conduza a um estado de obsolescência. Se os movimentos desconstituintes persistirem, e novos ataques forem dirigidos ao núcleo do texto ora vigente, não mais será possível restaurar um mínimo padrão de estabilidade institucional, e com isso a história que se iniciou em 5 de outubro de 1988 terá chegado ao seu termo final.
Esse desfecho, porém, não é inevitável e ainda não se configurou.
Desde 1988, o Brasil enfrentou algumas crises políticas e experimentou uma razoável alternância no comando do Poder Executivo federal. A Constituição de 1988 esteve à altura desses desafios – ela forneceu o quadro institucional que permitiu, nos anos de 1995-2002 (era FHC), a aprovação de emendas constitucionais que modificaram elementos da economia e da administração pública com o objetivo de implementar reformas liberalizantes e que diminuíram a presença do Estado na economia e na vida social. No período compreendido entre 2003 e 2014 (era Lula-Dilma), a Constituição absorveu as modificações relacionadas a políticas sociais inclusivas, como a ampliação de direitos sociais (EC nº 72) e a política de valorização do salário mínimo.
A Constituição de 1988 possui, portanto, um grau de abertura suficiente para sustentar o equilíbrio institucional necessário a uma democracia contemporânea. Não há, assim, um vício de origem no desenho constitucional de 1988, que justifique a sua redefinição ou a substituição do texto constitucional. Isso permite afirmar que um segundo desfecho para a atual crise é possível e desejável. Ele envolve, antes de tudo, a retomada do compromisso com o sistema de regras e princípios presente na Constituição em vigor.
As constituições democráticas são marcadas por uma abertura para o futuro. São documentos constitucionais que devem ser apropriados por gerações que se sucedem na experiência histórica de uma comunidade política. Essas gerações são responsáveis pela tarefa de conceder sentido e atualização a determinados preceitos originais do texto. No caso brasileiro, em que a Constituição de 1988 afirmou o processo de redemocratização após uma longa ditadura, e no qual persistem índices alarmantes de desigualdade (que aumentaram, aliás, na atual crise constitucional), dois daqueles preceitos originais permanecem atuais: liberdade e igualdade. As gerações sucessivas terão, contudo, uma tarefa adicional, que é a de restabelecer a ordem constitucional abalada com a crise que foi desencadeada em 2016. Para isso, será necessário contrapor uma resistência aos impulsos desconstituintes, sob a forma de um movimento. Um movimento reconstituinte.