terça-feira, 26 de maio de 2015

Desafios da mudança constitucional: as forças armadas e a garantia “da lei e da ordem” como ameaça ao direito de greve

Prof. Dr. Ricardo Machado Lourenço Filho [1]


Quais os riscos de se atribuir às forças armadas a garantia da lei e da ordem? Os fatos ocorridos no dia 29 de abril deste ano em Curitiba, no Paraná, levantam essa questão. O confronto com os grevistas põe em destaque o papel da PM. A maioria dos grevistas era composta de professores da rede estadual de ensino que protestavam contra a votação, na Assembleia Legislativa, de projeto de lei que reestruturava a previdência do Estado. A polícia militar fora acionada pelo governo do Paraná, interessado na aprovação do projeto de lei. Desde o dia 25, a PM começara a cercar a praça onde se localiza o prédio da Assembleia Legislativa. Mais de mil policiais foram mobilizados. O chefe da Casa Civil do Paraná, Eduardo Sciarra, declarou que o Estado tinha por papel garantir a votação do projeto de lei. Em fevereiro deste ano, a Assembleia Legislativa já havia sido invadida por servidores estaduais em greve, boa parte deles também professores, diante da possibilidade de votação de projeto de lei que alterava direitos da carreira.
Na imprensa e nas redes sociais foram divulgadas várias imagens do conflito do dia 29 de abril – como a investida do batalhão de choque com escudos e cassetetes em direção aos grevistas. Chama atenção a violência empregada pela polícia militar. Mas não é só. O cerco realizado pela PM à Assembleia Legislativa do Paraná teve amparo em decisão judicial, proferida pela Justiça do Estado, no dia 24 de abril, numa ação de interdito proibitório. A decisão determinava ao Sindicato dos Professores que se abstivesse de “turbar ou esbulhar a posse” da Assembleia, sob pena de pagamento de multa diária de cem mil reais. O juízo autorizava, ainda, “a requisição de reforço policial para cumprimento da ordem”. A determinação judicial foi, então, utilizada como fundamento para a ação da polícia militar.
A postura do Estado e da polícia militar no Paraná não é nenhuma novidade. A utilização das forças armadas, em nome da preservação da ordem social ou do interesse do Estado (travestido de interesse “público”), tem sido uma recorrência, sobretudo em situações de greve. Há uma continuidade com práticas anteriores à Constituição de 1988. Três momentos permitem constatar essa anacronia.
O ano de 1968 é marcado por duas grandes greves no país, as primeiras mais significativas após o golpe militar de 1964. Em 16 de abril, os metalúrgicos da Companhia Belgo-Mineira, de Contagem-MG, entraram em greve. O governo – assim como o próprio sindicato profissional – foi surpreendido pela paralisação, gestada e articulada no “chão da fábrica”. Em poucos dias, a greve atingiu outras indústrias da região, e o número de trabalhadores parados saltou de 1.200 para cerca de 15.000. O então Ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, participou das negociações, convencendo os empregadores a conceder um aumento salarial de 10% (a pretensão dos empregados era de 25%), proposta essa rejeitada pelos grevistas. A força repressiva foi então acionada: a polícia ocupou a cidade, prisões foram realizadas e as reuniões sindicais, proibidas. O direito foi usado como instrumento de pressão: o Ministro do Trabalho ameaçou com o enquadramento na Lei de Segurança Nacional. A atuação estatal – associada às próprias dificuldades de resistência por parte dos empregados – levou ao fim da greve.
O movimento de Contagem serviu de exemplo, três meses depois, para a greve de Osasco-SP, na qual houve participação efetiva do Sindicato dos Metalúrgicos. As reivindicações eram mais amplas do que em Contagem, incluindo a “lei antigreve” do regime militar e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. A repressão sobre os grevistas foi mais intensa. O acesso à cidade foi bloqueado pelos militares, diversos grevistas foram presos e levados para o Departamento de Ordem Política e Social – DOPS, o sindicato sofreu intervenção pelo Ministério do Trabalho e uma tropa de choque expulsou os trabalhadores que ocupavam a Cobrasma – fábrica onde tivera início a paralisação.
No contexto do regime militar, o direito de greve era visto como uma ameaça, em especial à política econômica do governo, baseada, entre outros elementos, numa postura de arrocho salarial. A greve era uma ameaça à ordem, e isso autorizava seu enfrentamento pelas forças armadas – que estavam no poder. A Constituição de 1967 (tal como as de 1946 e 1934) previa, afinal, que elas se destinavam à defesa da Pátria e à garantia dos Poderes constituídos, da lei e da ordem.
Cerca de dez anos após os movimentos de Contagem e Osasco, as paralisações de 1978 a 1980 no ABC paulista marcaram a retomada do exercício do direito de greve no Brasil. A espontaneidade da greve de 1978, que começou em maio na Saab-Scania, sem uma articulação prévia por parte do sindicato, dificultou uma reação mais dura dos empregadores e do regime militar. A experiência serviu para os anos posteriores. Em 1979 e 1980, os metalúrgicos do ABC diversificaram os modos da greve, pela realização de piquetes e de assembleias fora dos locais de trabalho - até porque os empresários, prevendo a paralisação, impediram as ocupações das fábricas, forçando o confronto com a polícia. As autoridades acompanhavam de perto a movimentação dos grevistas. O resultado foram inúmeros conflitos com a polícia militar. As manifestações dos operários foram repreendidas com violência nas ruas. A polícia de choque dirigiu suas armas (como cassetetes e bombas de gás), carros e tanques contra os grevistas. Várias prisões foram realizadas. Em 1980, o Ministério do Trabalho interveio no sindicato, afastando sua diretoria. No pano de fundo, a Justiça do Trabalho declarara a ilegalidade da greve, o que dava ares de legitimidade à atuação das forças armadas, mais uma vez em defesa da lei e da ordem.
A despeito da repressão que o regime militar destinou à greve, o ciclo de paralisações de 1978 a 1980 reinseriu os trabalhadores nas discussões políticas. Isso produziu resultados ao longo da década de 1980, quando irromperam inúmeras greves, que veiculavam também pretensões relacionas à transição democrática. Quando a Assembleia Nacional Constituinte iniciou suas atividades em 1987, havia uma significativa experiência relacionada ao direito de greve. Práticas e posturas estatais de repressão à greve, algumas delas com respaldo do Poder Judiciário, foram questionadas, sob o crivo da construção de um Estado Democrático de Direito.
A mera promulgação de uma Constituição democrática não seria suficiente, porém, para modificar certos usos, práticas e mentalidades. A greve da Companhia Siderúrgica Nacional – CSN de 1988 é ilustrativa.
Um mês após a entrada em vigor da atual Constituição, a investida do Exército contra os grevistas da CSN, em Volta Redonda-RJ, teve como resultado três operários mortos e inúmeros outros feridos. Os militares se prepararam para o confronto, utilizando armamento pesado, tanques e carros blindados. O principal conflito entre o Exército e os grevistas ocorreu em 9 de novembro de 1988, quando os militares invadiram a usina com o objetivo de retirar os operários que a ocupavam. A justificativa para a ação do Exército seria, além da própria opção do governo, uma ordem judicial que acolhera pedido liminar em ação de reintegração de posse (i.e., um interdito proibitório) proposta pela CSN. O General José Luiz Lopes da Silva declarou à imprensa que os militares tinham por função garantir a execução da decisão judicial. Em suas palavras, o Exército estava ali “para restabelecer a ordem e assegurar a integridade do patrimônio da companhia”. O General afirmou, em nota pública, que “o emprego da tropa federal (...) concretizou-se por solicitação do Poder Judiciário da comarca de Volta Redonda, dentro da nova ordem constitucional vigente”. Ou seja, a ação militar estaria respaldada pelo Poder Judiciário e pela Constituição.
A compreensão da assertiva do General José Luiz Lopes da Silva não exige nenhuma interpretação sofisticada do texto constitucional. A Constituição de 1988, tal como a de 1967, prevê que as forças armadas se destinam à garantia da lei e da ordem. Mas o conceito de ordem não é unívoco. As experiências concretas têm demonstrado que as próprias forças armadas, em suas ações, interpretam e definem o que é “lei e ordem” e o que é necessário para mantê-las – e, por conseguinte, o que as ameaça. Isso fica evidente nos três momentos acima indicados. E também na greve dos professores do Paraná (cuja Constituição também atribui à polícia militar a preservação da ordem pública).
O Coronel da polícia militar, César Vinícius Kogut, disse à imprensa que a ação da PM foi inevitável. Segundo ele, o Comandante que determinara a atuação da polícia – com o cerco à praça e a reação aos grevistas – visava à “proteção da Assembleia” e ao “cumprimento da ordem judicial”. Para o Coronel, “a PM existe para proteger a sociedade. Veio uma ordem judicial e nós tivemos que cumprir. Era a nossa missão e ela foi cumprida...  Nós não estávamos ali porque queríamos, mas porque a Justiça decidiu”.
A ação da polícia estaria amparada na decisão judicial proferida no processo de interdito proibitório. A determinação de abstenção ao Sindicato de esbulho à posse da Assembleia foi traduzida na autorização para cerco do prédio da Assembleia, impedindo, com violência, a aproximação dos grevistas – prática comum nessas ações de preservação da ordem. A polícia cria a ordem (social, política, econômica) que vai garantir, ao pretexto de cumprimento da determinação judicial. A Constituição parece atribuir essa prerrogativa às forças armadas. Isso não significa que a ação da polícia militar do Paraná seja constitucional. Pelo contrário, não tem respaldo na Constituição.
A questão posta é, antes de tudo, o uso que é feito do texto constitucional. É o caso de retomar a pergunta feita no início, a partir da experiência histórica brasileira recente. Talvez seja possível indicar que pelo menos um dos riscos de se atribuir às forças armadas a garantia da lei e da ordem seja justamente a violação de direitos fundamentais, como o direito de greve. Em última análise, tem-se a própria subversão da Constituição e do Estado Democrático de Direito.
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[1] Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília - UnB, Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP e membro dos grupos de pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania", vinculado à Faculdade de Direito da UnB, e "Percursos, Narrativas e Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo".

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