segunda-feira, 1 de junho de 2015

CONTRA O RETROCESSO DOS DIREITOS DOS TRABALHADORES: EM PROTESTO AOS PROJETOS DE LEI nº 432/13 e nº 3.842/12

Lívia Mendes Moreira Miraglia[1]
Lília Carvalho Finelli[2]
Vivenciamos um momento crítico para o Direito do Trabalho brasileiro. As recentes votações legislativas no Congresso Nacional demonstram uma clara tentativa de desconstrução de direitos trabalhistas historicamente consolidados e uma ameaça concreta de retrocesso social.
Nesse sentido, além do PL 4330/04 que permite a terceirização ampla e restrita, destacam-se os Projetos de Lei nº 432/2013 e nº 3.842/2012, que alteram o artigo 149 do Código Penal para excluir a jornada exaustiva e as condições degradantes do tipo penal que condena o trabalho em condições análogas às de escravo.
Os referidos projetos, em tramitação no Senado e na Câmara respectivamente, visam a regulamentar o artigo 243 da Constituição da República que, por meio da Emenda Constitucional nº 81/14, passou a permitir a expropriação das glebas em que for utilizada mão-de-obra em condições análogas às de escravo. No entanto, esvaziam o conteúdo do artigo 149 do Código Penal, ocasionando verdadeiro retrocesso na proteção ao trabalhador.
Atualmente, prevê o Código Penal que o crime de redução à condição análoga à de escravo abrange a submissão a trabalhos forçados e/ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Também incorre na mesma pena de reclusão de dois a oito anos quem cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador e quem mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
A aprovação do PLS nº 432/13 e/ou do PL nº 3.842/12, restringe o tipo penal, de forma a considerar como trabalho em condições análogas às de escravo apenas aquele em que há: a submissão a trabalho forçado, exigido sob ameaça de punição, com uso de coação ou com restrição da liberdade pessoal; o cerceamento do uso de meio de transporte para reter o trabalhador no local de trabalho; a vigilância ostensiva e a apropriação de seus documentos e a restrição de sua locomoção em razão de dívida.
A retirada da jornada exaustiva e do trabalho em condições degradantes do tipo penal brasileiro representa retrocesso na proteção de direitos historicamente conquistados.
O conceito atual é considerado pela Organização Internacional do Trabalho como marco internacional a ser seguido pelos demais países, colocando o Brasil à frente no combate à escravidão moderna. Países como a França, Venezuela e Espanha possuem projetos de lei inspirados na legislação brasileira, com o objetivo de punir a “exploração da vulnerabilidade dos trabalhadores e trabalhadoras, assim como condições de trabalho que violam a dignidade da pessoa humana [3].
Além disso, o texto dos referidos projeto contrariam a própria doutrina e jurisprudência pátrias, que já consolidaram entendimento no sentido de que o trabalho em condições análogas ao de escravo compreende o trabalho forçado, a servidão por dívida, o trabalho em condições degradantes e o trabalho com submissão do trabalhador a jornadas extenuantes.
Nesse sentido inclusive, caminha a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que na lavra da Ministra Rosa Weber entendeu que:
Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”.[4]
Não obstante a insistência da bancada ruralista – tanto da Câmara quanto do Senado – de compreender a norma constitucional como de eficácia limitada, com o intuito de justificar a aprovação de Projetos de Leis[5] para regulamentar o artigo 243 da CF/1988, é importante ressaltar que o ordenamento jurídico pátrio já possui dispositivo definidor do trabalho em condições análogas às de escravo. Assim, qualquer proposta legislativa visando à regulamentação da expropriação de terras onde se encontre trabalho escravo deve estar em consonância com a legislação pátria vigente e com as Convenções internacionais já ratificadas pelo país. Não se pode permitir a incongruência ou a existência de conceitos dissonantes que estabeleçam diferentes penalidades para a mesma prática.
Ressalte-se ainda que, foi a partir desse conceito de trabalho escravo contemporâneo que o Ministério do Trabalho e Emprego realizou mais de 1500 operações de resgate nos últimos 20 anos, resultando em mais de 80 milhões de reais em indenizações e mais de 40.000 trabalhadores resgatados[6]. Forçoso destacar que mais de 80% das autuações se deu em razão da verificação da submissão do trabalhador a condições degradantes de trabalho e/ou à jornada exaustiva.
Ao contrário do que se propaga, o conceito de jornada exaustiva e o de condições degradantes são bem sedimentados na doutrina e na jurisprudência. Há inclusive diversas normativas dos órgãos responsáveis pela fiscalização e pelo combate da prática conceituando de forma expressa e clara as figuras penais em análise. Nesse sentido são as orientações da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT, por exemplo.
Como jornada exaustiva, entende-se a submissão do trabalhador a um esforço excessivo e frequente, com sobrecarga de trabalho, ficando este sem tempo suficiente para a recuperação física, resultando em possíveis danos à sua saúde ou, até mesmo, em risco de morte. Na caracterização do trabalho escravo por jornada exaustiva, o que está em jogo é a proteção integral à saúde, garantindo o descanso e permitindo o convívio social. Como exemplo dessa caracterização estão os casos de cortadores de cana de açúcar que faleceram por exaustão devido à jornada intensa a que eram submetidos.
Da mesma forma, as condições degradantes são conceituadas de forma simples, consideradas no caso em que o empregador sujeita o trabalhador a cumprir suas atividades em condições que ferem a sua dignidade, em especial no que diz respeito à alimentação, à moradia, à saúde e à segurança no trabalho.
Por isso, é imperioso repudiar os projetos de lei que pretendem esvaziar o conceito atual e progressista do artigo 149 do Código Penal, proclamado internacionalmente como o mais avançado do mundo, com o objetivo exclusivo de evitar as condenações recorrentes a que vêm sendo submetidas as empresas que dele se utilizam.



[1] Doutora e Mestre em Direito do Trabalho. Professora adjunta de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UFMG. Coordenadora da Clínica de combate ao trabalho escravo e tráfico de pessoas da FDUFMG. Advogada. Autora do livro: Trabalho escravo contemporâneo: conceituação à luz da dignidade da pessoa humana. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2015. Muitos dos dados e informações aqui constantes foram retirados da recente atualização da obra.
[2] Mestranda pela Faculdade de Direito da UFMG, bolsista pela Fapemig, advogada, agraciada com o Prêmio Messias Pereira Donato (melhor aluna em Direito Material e Processual do Trabalho da Faculdade de Direito da UFMG) e técnica em Administração de Empresas pelo SEBRAE/MG, membro do Projeto Clínica de trabalho escravo e tráfico de pessoas da FDUFMG.
[3] OIT. Código Penal é consistente com Convenções internacionais para punir trabalho forçado, diz a OIT. Disponível em: <http://www.oit.org.br/content/codigo-penal-e-consistente-com-convencoes-internacionais-para-punir-trabalho-forcado-diz-oit>. Acesso em: 15 abr 2015.
[4] STF. Inquérito nº 3.412. Autor: Ministério Público Federal. Investigado: João José Pereira de Lyra e outro. Publicado no DJE em 12/11/2012, sem grifos no original.
[5] PL 432/14, que visa a regulamentar a EC nº 81/2014 reproduz em grande parte o artigo 149 do Código Penal. Não obstante, deixa de qualificar como trabalho escravo: o trabalho em condições degradantes; e com submissão do trabalhador a jornadas exaustivas.  Ao se omitir sobre tais itens, o PL deixa de tratar do tema mais polêmico em torno do conceito de trabalho escravo na atualidade. Isso porque 90% dos casos de trabalho em condições análogas à de escravo na contemporaneidade dizem respeito a condições degradantes de trabalho.
[6] MTE. Quadro geral das operações de fiscalização para erradicação do trabalho escravo - SIT/SRTE 1995 a 2013. Disponível em: <http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C816A45B26698014625BF23BA0208/Quadro%20resumo%20opera%C3%A7%C3%B5es%20T.E.%201995%20-%202013.%20Internet.pdf>. Acesso em: 25 maio 2015.

Nenhum comentário:

Postar um comentário