quarta-feira, 18 de junho de 2014

A TERCEIRIZAÇÃO E O SUPREMO (PARTE 3) - Sobre a liberdade de precarizar: o Supremo e o recuo na história


Lara Parreira de Faria Borges
Renata Queiroz Dutra

Foi reaberta a disputa em torno da questão da terceirização em nosso país. Após o embate no Congresso Nacional, deflagrado pelo Projeto de Lei nº 4330, de autoria do Deputado Sandro Mabel, que visava regulamentar a terceirização trabalhista, ampliando suas possibilidades para toda e qualquer atividade empresarial, se reinstala, agora em um foro diferente, a luta na qual os trabalhadores outrora saíram vitoriosos. 

No calor do avanço do processo legislativo do PL nº 4330 (agosto e setembro de 2013), o movimento sindical brasileiro manifestou sua força e, ao custo de muita mobilização e articulação política, amplo processo de convencimento público, ocupações de comissões da Câmara dos Deputados (algumas dando ensejo a repressões policiais com uso de spray de pimenta), conseguiu retirar de pauta o referido projeto de lei. Com isso, reafirmou-se a permanência da normatização trabalhista vigente, que, amparada na Consolidação das Leis do Trabalho, elege a relação bilateral de emprego como regra para as relações de trabalho e autoriza, apenas a título excepcional, as possibilidades de terceirização previstas na legislação esparsa (por exemplo, art. 10, § 7º, do Decreto-Lei n.º 200/67, Lei nº Lei nº 5.645/70, Lei nº 6.019/74 e Lei nº 7.102/83, posteriormente ampliada pela Lei nº 8.863/94). Desde então a questão está parada no Congresso Nacional (confira o andamento do PL).

Menos de um ano depois de reafirmada a opção legislativa por um determinado modelo de regulação das relações de trabalho, o Supremo Tribunal Federal, no bojo do ARE 713.211/MG, reconhece a repercussão geral da terceirização de atividade-fim, por uma suposta violação da liberdade de contratação (evidentemente a referência foi exclusiva à liberdade de contratação dos empregadores) também supostamente inserida no art. 5º, II, da Constituição Federal, como bem relatado aqui e problematizado aqui.


A discussão é a mesma. Os argumentos levantados por cada um dos lados também pouco se alteraram.

O empresariado entende que a terceirização é a forma mais moderna de organização produtiva e que é impossível atuar competitivamente no mercado globalizado arcando com os custos e com a logística de empresas com grande número de trabalhadores contratados diretamente.

Os trabalhadores, por sua vez, reclamam um modelo de desenvolvimento que respeite os valores sociais do trabalho. Associam a terceirização e a redução de custos que ela promove à precarização das relações de trabalho, à exposição da vida e da saúde dos trabalhadores, à fragilização de categorias sindicais, entre outras consequências.

Como transplantar a agenda política ricamente criada pelo debate público que o direito de voto proporciona (URBINATI, 2006) ao espaço da Corte Constitucional? Como assegurar que a correlação de forças efetivamente existente na sociedade a respeito de questões políticas fundamentais seja traduzida na composição da Corte Constitucional?

Em 1905, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América entendeu no julgamento do caso “Lochner vs. New York” que a décima quarta emenda à Constituição americana garantiria a inconstitucionalidade de uma lei que regulava a jornada máxima que padeiros poderiam trabalhar diária e semanalmente. 

Para melhor análise desta emblemática decisão da Suprema Corte é necessário o conhecimento do teor desta emenda. Eis sua redação:

“Nenhum Estado poderá fazer ou executar qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem qualquer Estado privar qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal; nem negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis.”


Com base nesta emenda, a Suprema Corte entendeu que seria incabível a regulação por parte do estado na forma de legislação trabalhista da jornada de trabalho dos padeiros, por não estar provada a condição de insalubridade.

Interessante perceber que o voto vencedor na decisão fundamentou a inconstitucionalidade da lei do estado de Nova Iorque na violação do princípio do devido processo legal, que atua como óbice a qualquer restrição à liberdade e à propriedade. Assim, 5 contra 4 ministros da Suprema Corte americana compreenderam que uma decorrência lógica do princípio do devido processo legal seria a liberdade de contratação. Segundo a posição dominante no julgamento, na relação de trabalho ambas as partes possuem liberdade e deve haver respeito tanto à liberdade de contratar como à liberdade de vender a força de trabalho. Assim, uma lei estadual que restringisse a jornada de trabalho estaria limitando a liberdade do trabalhador vender sua força de trabalho ao empregador, de forma a violar frontalmente a décima quarta emenda à Constituição americana.

Importante observar as semelhanças entre esta decisão da Suprema Corte americana -  proferida em 1905 (início do século XX) e inclusive superada pela própria Suprema Corte com o caso “West Coast Hotel vs. Parrish” em  1937 – e o reconhecimento da repercussão geral no ARE 713.211/MG pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro em maio de 2014 (pleno século XXI).

Com as devidas proporções e adequações em relação ao objeto discutido, ambos os casos possuem em comum a temática da regulação da contratação da força de trabalho.

Tanto a Suprema Corte americana em 1905 quanto o Supremo Tribunal Federal brasileiro em 2014 trataram da regulação estatal das relações de trabalho sob a ótica da liberdade de contratação partindo de princípios constitucionais mais amplos e abstratos que nada dizem especificamente sobre relação de emprego, tampouco referem-se aos princípios fundadores do direito do trabalho. No caso norte-americano, o princípio matriz para a decisão foi o devido processo legal que resguarda a vida, a liberdade e a propriedade; e, no caso brasileiro, o princípio da legalidade (segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” - artigo 5º, II, da Constituição da República Federativa do Brasil).

Observa-se que desses dois princípios abstratos (devido processo legal e legalidade) as Cortes conseguiram extrair o mesmo princípio: “a liberdade de contratação”. Entendeu-se, em ambas as situações, que as relações de trabalho podem ser tratadas pelo princípio da liberdade de contratação, esquecendo-se de que há um desnível de forças e poderio econômico entre as partes contratantes. No caso Lochner vs. New York essa premissa mostrou-se bastante evidente por este trecho do voto vencedor:

“O direito geral de fazer um contrato em relação ao seu negócio é parte da liberdade protegida pela Décima Quarta Emenda, e isso inclui o direito de comprar e vender de trabalho, exceto quando controlada pelo Estado no exercício legítimo do seu poder de polícia. É claro que a liberdade de contrato relativo ao trabalho inclui ambas as partes ligadas a ele. Uma das partes tem tanto direito de compra  quanto a outra tem para vender o trabalho”.
          


No caso do ARE 713.211, o Ministro Relator entendeu o seguinte:

“O thema decidendum, in casu, cinge-se à delimitação das hipóteses de terceirização de mão-de-obra diante do que se compreende por atividade-fim, matéria de índole constitucional, sob a ótica da liberdade de contratar, nos termos do art. 5º, inciso II, da CRFB.”

Segundo as análises de constitucionalistas que estudam o caso americano, como Cass Sustein, a opção da Suprema Corte americana articulou-se no discurso de que o governo não poderia tomar partidos, mas deveria prezar por uma atuação neutra e imparcial com relação às partes contratantes, e a única forma de atingir esse objetivo seria deixando de interferir na liberdade dos particulares. A Corte desconsiderou a desigualdade de forças real existente no mundo do trabalho, entendendo que os particulares são pares.

O conceito de liberdade é entendido por muitos liberais, como John Rawls e Isaiah Berlin, como a ausência de interferência por parte do governo na vida dos particulares. Assim, toda interferência seria sinônimo de ausência de liberdade para os militantes de direita. Uma crítica direcionada a esse conceito de liberdade é formulada por G. A. Cohen, quando afirma que essa compreensão de liberdade garante apenas a não interferência no direito de propriedade privada, “mas apoia a interferência no acesso dos pobres à mesma liberdade privada e por consequência não pode defender o direito de propriedade invocando o valor de liberdade no sentido de não-interferência”.

Assim, observa-se como a liberdade de contratação, na verdade, apenas serve de suporte para o empregador que contrata o serviço do padeiro no caso americano, e para as empresas tomadoras e prestadoras de serviços no caso brasileiro. Não se vislumbra uma liberdade daqueles que efetivamente vêem sua força de trabalho comercializada em nenhum dos casos.

O trabalhador terceirizado que figura na relação triangular como um objeto da relação comercial firmado entre empresa prestadora de serviços e empresa tomadora de serviços, deslocado da realidade de ambas as empresas temporal e espacialmente (PAIXÃO, LOURENÇO, 2009), não tem vontade contratual alguma a ser manifestada senão a necessidade de sobrevivência a partir do seu trabalho.

Na terceirização, os detentores dos meios de produção, os proprietários, possuem a liberdade de contratação a seu favor, já os destituídos de propriedade contam apenas com uma única alternativa que é a extração da dupla mais valia de sua força de trabalho, sem qualquer perspectiva de liberdade.

O argumento de neutralidade do Estado em face de conflitos ou mesmo a perspectiva de preservação da autonomia das partes em conflitos assimétricos desconsidera o percurso histórico de afirmação e evolução da proteção ao trabalho, que superou essas duas equivocadas premissas.

Primeiramente, não existe neutralidade do Estado em face da regulação do trabalho, pela simples razão de que não existe, em uma sociedade capitalista, vácuo de regulação. Ou bem o Estado regula o trabalho, o fazendo mais ou menos intensamente, ou as leis do mercado o regularão, na exata medida da extensão que o Estado deixa de normatizar. Portanto, não existe a possibilidade de “não regular” certas formas de contratar o trabalho: o estado tão-somente consente e chancela que as leis do mercado regulem o trabalho, assumindo a consequência óbvia de que este seja oferecido, remunerado e condicionado pelas regras da oferta e da procura e pelo menor custo possível, ainda que ele implique periclitação da vida, da saúde e da subsistência da classe que vive do trabalho em favor do laissez faire.

Segundo, falar em liberdade de contratação e em autonomia da vontade numa relação entre duas partes tão desiguais somente significa entregar o trabalhador ao arbítrio de quem o emprega. Ou até mesmo no caso de se considerar que a liberdade de contratação circunscreve-se às empresas tomadora e prestadora de serviços, tem-se a completa desconsideração do trabalhador terceirizado como parte dessa relação triangular.

É que o trabalhador, ao celebrar contrato de trabalho, vincula a sua força de trabalho em proveito do empreendimento econômico do sujeito que o contrata, mas a inapartabilidade entre sujeito e objeto revela a dificuldade de tratar, como pretenderia a lógica do sistema capitalista, da força de trabalho empenhada pelo obreiro como uma mercadoria.

Diante desse contexto, o Direito do Trabalho, surge, na gênese capitalista, da necessidade de uma ação estatal que, por meio de “contramovimentos” protetores que limitassem o mecanismo autodestrutivo do mercado capitalista, obstasse a transformação do trabalho humano em mercadoria (POLANYI, 2011).

Uma das primeiras afirmações principiológicas proferidas pela Organização Internacional do Trabalho não foi outra que não a de que o trabalho humano não é uma mercadoria, conforme consta da Parte XIII do Tratado de Versalhes, da Declaração de Filadélfia de 1944 e, mais recentemente, da Declaração de Princípios Fundamentais da OIT de 1998.

Nesse sentido, é imperativa a conclusão de que proteger o trabalho prestado por um indivíduo significa proteger a dignidade desse próprio indivíduo, que dele não se aparta e por meio dele se afirma.

O contrato de trabalho, assim, representa um contrato de adesão, que demanda a interferência estatal a fim de evitar que a desigualdade real entre as partes suplante a igualdade formal e submeta o trabalhador ao arbítrio empresarial (GOMES, 2005). “É restringindo-a [a liberdade de contratar] que consegue desabilitar o poder individual dos capitalistas, pois que à sombra dessa liberdade eles haviam estabelecido, no mundo do trabalho, a ditadura do patronato” (GOMES, 1954).

Caso o Supremo Tribunal Federal brasileiro, após reconhecer a repercussão geral sob a ótica da liberdade de contratação, adote o mesmo caminho perfilhado no caso Lochner v. New York, o Brasil terá não apenas um retrocesso de mais de um século em teoria constitucional, como também estará bradando em nome da liberdade quando a única face que os trabalhadores poderão vislumbrar será o aprisionamento de sua força de trabalho.

REFERÊNCIAS:

Lochner v. New York – 198 U. S. 45 (1906). Disponível em: < http://supreme.justia.com/cases/federal/us/198/45/case.html > Acesso em 11.6.2014.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ARE 713.211/MG. Embargos de Declaração no Agravo Regimento no Recurso Extraordinário com Agravo. Disponível em : <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5667074> Acesso em 11.06.2014.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm > Acesso em 11.6.2014.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

COHEN, Gerald. Freedom and Money. In: COHEN, G. A. On The Currency of Egalitarian Justice, and other essays in political philosophy. Michael OTSUKA (org). Princeton: Princeton University Press, 2011, p. 166-192.

GOMES, Orlando. Direito do Trabalho: Estudos. 3ª Edição. Bahia, 1954.

GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

MANIN, Benanrd; PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Susan. Eleições e representação. Lua Nova, São Paulo, 67, p. 105-138, 2006.

PAIXÃO, Cristiano; LOURENÇO FILHO, Ricardo Machado. Entre a indisponibilidade e a negociação: as normas coletivas como fontes do direito do trabalho. Caderno Jurídico. Escola Judicial do TRT da 10ª Região. Brasília, ano 3, volume 3, n. 4, julho/agosto de 2009.

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

SUSTEIN, Cass R. Lochner’s Legacy. In: Columbia Law Review, Vol. 87:873, 1987, p. 873-919.

URBINATI, Nádia. O que torna a representação democrática? Lua Nova, São Paulo, 67, p. 191-228, 2006.

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Lara Parreira de Faria Borges é mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e assessora de Ministra do TST.


Renata Queiroz Dutra é mestre e doutoranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, analista judiciária e assessora de Ministro do TST.

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