Lara
Parreira de Faria Borges
Renata
Queiroz Dutra
Foi reaberta a disputa em torno da questão da
terceirização em nosso país. Após o embate no Congresso Nacional, deflagrado
pelo Projeto de Lei nº 4330, de autoria do Deputado Sandro Mabel, que visava
regulamentar a terceirização trabalhista, ampliando suas possibilidades para
toda e qualquer atividade empresarial, se reinstala, agora em um foro
diferente, a luta na qual os trabalhadores outrora saíram vitoriosos.
No calor do avanço do processo legislativo do PL nº
4330 (agosto e setembro de 2013), o movimento sindical brasileiro manifestou
sua força e, ao custo de muita mobilização e articulação política, amplo
processo de convencimento público, ocupações de comissões da Câmara dos
Deputados (algumas dando ensejo a repressões policiais com uso de spray de
pimenta), conseguiu retirar de pauta o referido projeto de lei. Com isso,
reafirmou-se a permanência da normatização trabalhista vigente, que, amparada
na Consolidação das Leis do Trabalho, elege a relação bilateral de emprego como
regra para as relações de trabalho e autoriza, apenas a título excepcional, as
possibilidades de terceirização previstas na legislação esparsa (por exemplo,
art. 10, § 7º, do Decreto-Lei n.º 200/67, Lei nº Lei nº 5.645/70, Lei nº
6.019/74 e Lei nº 7.102/83, posteriormente ampliada pela Lei nº 8.863/94).
Desde então a questão está parada no Congresso Nacional (confira o andamento do PL).
Menos de um ano depois de reafirmada a opção
legislativa por um determinado modelo de regulação das relações de trabalho, o
Supremo Tribunal Federal, no bojo do ARE 713.211/MG, reconhece a repercussão
geral da terceirização de atividade-fim, por uma suposta violação da liberdade
de contratação (evidentemente a referência foi exclusiva à liberdade de
contratação dos empregadores) também supostamente inserida no art. 5º, II, da
Constituição Federal, como bem relatado aqui e problematizado aqui.
A discussão é a mesma. Os argumentos levantados por
cada um dos lados também pouco se alteraram.
O empresariado entende que a terceirização é a forma
mais moderna de organização produtiva e que é impossível atuar competitivamente
no mercado globalizado arcando com os custos e com a logística de empresas com
grande número de trabalhadores contratados diretamente.
Os trabalhadores, por sua vez, reclamam um modelo de
desenvolvimento que respeite os valores sociais do trabalho. Associam a
terceirização e a redução de custos que ela promove à precarização das relações
de trabalho, à exposição da vida e da saúde dos trabalhadores, à fragilização
de categorias sindicais, entre outras consequências.
Como transplantar a agenda política ricamente criada
pelo debate público que o direito de voto proporciona (URBINATI, 2006) ao
espaço da Corte Constitucional? Como assegurar que a correlação de forças
efetivamente existente na sociedade a respeito de questões políticas fundamentais
seja traduzida na composição da Corte Constitucional?
Em 1905, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América
entendeu no julgamento do caso “Lochner vs. New York” que a décima quarta emenda à Constituição americana
garantiria a inconstitucionalidade de uma lei que regulava a jornada máxima que
padeiros poderiam trabalhar diária e semanalmente.
Para melhor análise desta emblemática decisão da Suprema
Corte é necessário o conhecimento do teor desta emenda. Eis sua redação:
“Nenhum Estado poderá fazer ou executar qualquer
lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos;
nem qualquer Estado privar qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade,
sem o devido processo legal; nem negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a
igual proteção das leis.”
Com base nesta emenda, a Suprema Corte entendeu que
seria incabível a regulação por parte do estado na forma de legislação
trabalhista da jornada de trabalho dos padeiros, por não estar provada a
condição de insalubridade.
Interessante perceber que o voto vencedor na decisão
fundamentou a inconstitucionalidade da lei do estado de Nova Iorque na violação
do princípio do devido processo legal, que atua como óbice a qualquer restrição
à liberdade e à propriedade. Assim, 5 contra 4 ministros da Suprema Corte
americana compreenderam que uma decorrência lógica do princípio do devido
processo legal seria a liberdade de contratação. Segundo a posição dominante no
julgamento, na relação de trabalho ambas as partes possuem liberdade e deve
haver respeito tanto à liberdade de contratar como à liberdade de vender a
força de trabalho. Assim, uma lei estadual que restringisse a jornada de
trabalho estaria limitando a liberdade do trabalhador vender sua força de
trabalho ao empregador, de forma a violar frontalmente a décima quarta emenda à
Constituição americana.
Importante observar as semelhanças entre esta decisão
da Suprema Corte americana - proferida em 1905 (início do século XX) e
inclusive superada pela própria Suprema Corte com o caso “West Coast Hotel vs.
Parrish” em 1937 – e o reconhecimento da repercussão geral no ARE
713.211/MG pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro em maio de 2014 (pleno
século XXI).
Com as devidas proporções e adequações em relação ao
objeto discutido, ambos os casos possuem em comum a temática da regulação da
contratação da força de trabalho.
Tanto a Suprema Corte americana em 1905 quanto o Supremo
Tribunal Federal brasileiro em 2014 trataram da regulação estatal das relações
de trabalho sob a ótica da liberdade de contratação partindo de princípios
constitucionais mais amplos e abstratos que nada dizem especificamente sobre
relação de emprego, tampouco referem-se aos princípios fundadores do direito do
trabalho. No caso norte-americano, o princípio matriz para a decisão foi o
devido processo legal que resguarda a vida, a liberdade e a propriedade; e, no
caso brasileiro, o princípio da legalidade (segundo o qual “ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” -
artigo 5º, II, da Constituição da República Federativa do Brasil).
Observa-se que desses dois princípios abstratos
(devido processo legal e legalidade) as Cortes conseguiram extrair o mesmo
princípio: “a liberdade de contratação”. Entendeu-se, em ambas as situações,
que as relações de trabalho podem ser tratadas pelo princípio da liberdade de
contratação, esquecendo-se de que há um desnível de forças e poderio econômico
entre as partes contratantes. No caso Lochner vs. New York essa premissa mostrou-se
bastante evidente por este trecho do voto vencedor:
“O direito geral de fazer um contrato em relação
ao seu negócio é parte da liberdade protegida pela Décima Quarta Emenda, e isso
inclui o direito de comprar e vender de trabalho, exceto quando controlada pelo
Estado no exercício legítimo do seu poder de polícia. É claro que a liberdade
de contrato relativo ao trabalho inclui ambas as partes ligadas a ele. Uma das
partes tem tanto direito de compra quanto a outra tem para vender o
trabalho”.
No caso do ARE 713.211, o Ministro Relator entendeu o
seguinte:
“O thema decidendum, in casu, cinge-se à
delimitação das hipóteses de terceirização de mão-de-obra diante do que se
compreende por atividade-fim, matéria de índole constitucional, sob a ótica da
liberdade de contratar, nos termos do art. 5º, inciso II, da CRFB.”
Segundo as análises de constitucionalistas que estudam
o caso americano, como Cass Sustein, a opção da Suprema Corte americana
articulou-se no discurso de que o governo não poderia tomar partidos, mas
deveria prezar por uma atuação neutra e imparcial com relação às partes
contratantes, e a única forma de atingir esse objetivo seria deixando de
interferir na liberdade dos particulares. A Corte desconsiderou a desigualdade
de forças real existente no mundo do trabalho, entendendo que os particulares
são pares.
O conceito de liberdade é entendido por muitos
liberais, como John Rawls e Isaiah Berlin, como a ausência de interferência por
parte do governo na vida dos particulares. Assim, toda interferência seria
sinônimo de ausência de liberdade para os militantes de direita. Uma crítica
direcionada a esse conceito de liberdade é formulada por G. A. Cohen, quando
afirma que essa compreensão de liberdade garante apenas a não interferência no
direito de propriedade privada, “mas apoia a interferência no acesso dos pobres
à mesma liberdade privada e por consequência não pode defender o direito de
propriedade invocando o valor de liberdade no sentido de não-interferência”.
Assim, observa-se como a liberdade de contratação, na
verdade, apenas serve de suporte para o empregador que contrata o serviço do
padeiro no caso americano, e para as empresas tomadoras e prestadoras de
serviços no caso brasileiro. Não se vislumbra uma liberdade daqueles que
efetivamente vêem sua força de trabalho comercializada em nenhum dos casos.
O trabalhador terceirizado que figura na relação
triangular como um objeto da relação comercial firmado entre empresa prestadora
de serviços e empresa tomadora de serviços, deslocado da realidade de ambas as
empresas temporal e espacialmente (PAIXÃO, LOURENÇO, 2009), não tem vontade
contratual alguma a ser manifestada senão a necessidade de sobrevivência a
partir do seu trabalho.
Na terceirização, os detentores dos meios de produção,
os proprietários, possuem a liberdade de contratação a seu favor, já os
destituídos de propriedade contam apenas com uma única alternativa que é a
extração da dupla mais valia de sua força de trabalho, sem qualquer perspectiva
de liberdade.
O argumento de neutralidade do Estado em face de
conflitos ou mesmo a perspectiva de preservação da autonomia das partes em
conflitos assimétricos desconsidera o percurso histórico de afirmação e
evolução da proteção ao trabalho, que superou essas duas equivocadas premissas.
Primeiramente, não existe neutralidade do Estado em
face da regulação do trabalho, pela simples razão de que não existe, em uma
sociedade capitalista, vácuo de regulação. Ou bem o Estado regula o trabalho, o
fazendo mais ou menos intensamente, ou as leis do mercado o regularão, na exata
medida da extensão que o Estado deixa de normatizar. Portanto, não existe a
possibilidade de “não regular” certas formas de contratar o trabalho: o estado
tão-somente consente e chancela que as leis do mercado regulem o trabalho,
assumindo a consequência óbvia de que este seja oferecido, remunerado e
condicionado pelas regras da oferta e da procura e pelo menor custo possível,
ainda que ele implique periclitação da vida, da saúde e da subsistência da
classe que vive do trabalho em favor do laissez faire.
Segundo, falar em liberdade de contratação e em
autonomia da vontade numa relação entre duas partes tão desiguais somente
significa entregar o trabalhador ao arbítrio de quem o emprega. Ou até mesmo no
caso de se considerar que a liberdade de contratação circunscreve-se às
empresas tomadora e prestadora de serviços, tem-se a completa desconsideração
do trabalhador terceirizado como parte dessa relação triangular.
É que o trabalhador, ao celebrar contrato de trabalho,
vincula a sua força de trabalho em proveito do empreendimento econômico do
sujeito que o contrata, mas a inapartabilidade entre sujeito e objeto revela a
dificuldade de tratar, como pretenderia a lógica do sistema capitalista, da
força de trabalho empenhada pelo obreiro como uma mercadoria.
Diante desse contexto, o Direito do Trabalho, surge,
na gênese capitalista, da necessidade de uma ação estatal que, por meio de
“contramovimentos” protetores que limitassem o mecanismo autodestrutivo do
mercado capitalista, obstasse a transformação do trabalho humano em mercadoria
(POLANYI, 2011).
Uma das primeiras afirmações principiológicas
proferidas pela Organização Internacional do Trabalho não foi outra que não a
de que o trabalho humano não é uma mercadoria, conforme consta da Parte XIII do
Tratado de Versalhes, da Declaração de Filadélfia de 1944 e, mais recentemente,
da Declaração de Princípios Fundamentais da OIT de 1998.
Nesse sentido, é imperativa a conclusão de que
proteger o trabalho prestado por um indivíduo significa proteger a dignidade
desse próprio indivíduo, que dele não se aparta e por meio dele se afirma.
O contrato de trabalho, assim, representa um contrato
de adesão, que demanda a interferência estatal a fim de evitar que a
desigualdade real entre as partes suplante a igualdade formal e submeta o
trabalhador ao arbítrio empresarial (GOMES, 2005). “É restringindo-a [a
liberdade de contratar] que consegue desabilitar o poder individual dos capitalistas,
pois que à sombra dessa liberdade eles haviam estabelecido, no mundo do
trabalho, a ditadura do patronato” (GOMES, 1954).
Caso o Supremo Tribunal Federal brasileiro, após
reconhecer a repercussão geral sob a ótica da liberdade de contratação, adote o
mesmo caminho perfilhado no caso Lochner v. New York, o Brasil terá não apenas
um retrocesso de mais de um século em teoria constitucional, como também estará
bradando em nome da liberdade quando a única face que os trabalhadores poderão
vislumbrar será o aprisionamento de sua força de trabalho.
REFERÊNCIAS:
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URBINATI, Nádia. O que torna a representação
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***
Lara Parreira de Faria Borges é mestranda em Direito,
Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e assessora de Ministra do
TST.
Renata Queiroz Dutra é
mestre e doutoranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de
Brasília, analista judiciária e assessora de Ministro do TST.
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