Pedro Mahin Araujo Trindade
João Gabriel Pimentel Lopes
No último dia 16 de maio, o Supremo Tribunal Federal declarou que a questão referente à terceirização trabalhista oferece repercussão geral (ver relato de João Gabriel Lopes, aqui). Para tanto, valeu-se do debate empreendido nos autos do processo Emb. Decl. no Ag. Reg. no Recurso Extraordinário com Agravo 713.211/MG, sob a relatoria do Ministro Luiz Fux (aqui).
A Corte fundamentou sua decisão no sentido de que “a proibição genérica de terceirização calcada em interpretação jurisprudencial do que seria atividade-fim pode interferir no direito fundamental de livre iniciativa, criando, em possível ofensa direta ao art. 5º, inciso II, da CRFB, obrigação não fundada em lei capaz de esvaziar a liberdade do empreendedor de organizar sua atividade empresarial de forma lícita e da maneira que entenda ser mais eficiente”.
Desse modo, o entendimento alcançado pelo STF nesse caso particular vinculará toda a Justiça do Trabalho, que deverá adotar posicionamento idêntico – quanto à possibilidade de terceirizar a atividade-fim de determinado empreendimento empresarial – em situações semelhantes.
Os termos em que afirmada a repercussão geral da matéria – a partir da livre iniciativa e da correspondente liberdade de contratar – sugerem uma leitura seletiva do texto constitucional, que precisa ser expandida se pretendemos ter a dimensão exata do embate político que se põe em marcha. Isso porque a livre iniciativa, assim, como o próprio trabalho, é qualificada pela Constituição como um valor social e, somente enquanto tal, é estabelecida como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil ("A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos (...) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa").
Embora seja comum a leitura do princípio da livre iniciativa de forma dissociada de seu adjetivo “valor social”, a rigor, o texto constitucional não permite uma interpretação estritamente individualista desse princípio, como pode, à primeira vista, transparecer da decisão que afirmou a repercussão ampla da matéria atinente à terceirização. Na verdade, a interpretação isolada da livre iniciativa, distanciada de uma perspectiva ampliada da questão, pode acabar por omitir a necessária adequação desse preceito às demandas de integração social e de valorização do trabalho.
Nesse sentido, é imprescindível notar que a própria ordem econômica brasileira fundamenta-se na valorização do trabalho humano (artigo 170 da Constituição). Ou seja, a ordem econômica nacional, tal como estabelecida na Constituição brasileira, prioriza o trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. Assim, se a terceirização, seja de atividade-meio, seja de atividade-fim, produz efeitos nefastos sobre os trabalhadores e sua organização coletiva, ela deve ser terminantemente vedada no Brasil.
Entretanto, toda essa construção técnico-jurídica não é central no debate a respeito da terceirização. O rebuscado discurso técnico oculta a verdadeira face do problema, que é, antes de tudo, de caráter político: qual o modelo de relações de trabalho que pretendemos instalar no país, o de absoluta coisificação do homem e da mulher trabalhadora ou o que lhes garanta um mínimo de dignidade, ao atribuir-lhes a propriedade, no mínimo, de si mesmos, de sua força de trabalho? Deparamo-nos, aqui, com uma encruzilhada. E ambos os caminhos estão igualmente abertos.
Terceirização nada mais é do que a mais ampla expropriação do ser humano, que deixa de ser proprietário, inclusive, de sua força de trabalho, em favor da empresa prestadora de serviços terceirizados. A mercadoria colocada à disposição pela terceirização trabalhista é a energia vital dos empregados e das empregadas dessa empresa. O ser humano torna-se coisa, passível de ser alienado.
Nesse processo, perde-se não só o potencial do trabalho enquanto “meio de inserção socioeconômica e afirmação subjetiva dos seres humanos” (Manifesto de Repúdio ao Projeto de Lei nº 4330/2004, lançado pelo blog “Trabalho, Constituição e Cidadania”, em 4 de setembro de 2013,aqui), como também se fragmentam as categorias de trabalhadores e trabalhadoras, que, embora compartilhem de um mesmo ambiente de trabalho e das tarefas cotidianas, experimentam condições de vida e de trabalho absolutamente distintas, conforme a modalidade contratual a que submetidas/os.
Como ressaltado no Manifesto de Repúdio ao Projeto de Lei nº 4330/2004, a terceirização gera a pauperização dos trabalhadores e das trabalhadoras, a intensificação da sua exploração, mediante a ampliação das jornadas de trabalho, e uma maior rotatividade da mão-de-obra, com o consequente aumento do desemprego. Esse quadro de absoluta precariedade é agravado pela dificuldade encontrada pelos sindicatos obreiros em lidarem com a questão.
A legislação trabalhista constitui um anteparo que protege trabalhadores e trabalhadoras contra todo esse movimento. A autorização da terceirização não só da atividade-fim, como também da atividade-meio implica a supressão das leis trabalhistas naquilo que lhes é mais fundamental, como a subordinação e a pessoalidade diretas (sobre o tema, ler a análise feita por Ricardo José Macêdo de Britto Pereira, por ocasião da votação do Projeto de Lei 4.330/2004, aqui).
Por outro lado, o discurso da maior eficiência na organização empresarial, como proposto pelo Supremo Tribunal Federal quando do reconhecimento da repercussão geral da matéria referente à terceirização trabalhista, tende a sobrevalorizar o aspecto da produção de lucros, sem se preocupar, por outro lado, com o respeito aos direitos mínimos assegurados pela legislação trabalhista. Nesse sentido, os efeitos de tal discurso são, em regra, concentradores e excludentes.
O pronunciamento do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria, a partir de uma leitura fortemente seletiva do que seja a livre iniciativa no contexto da Carta de 1988, acaba por esvaziar-lhe o caráter político. O foco do debate judicial recai sobre o texto constitucional – a proibição genérica de terceirização da atividade-fim é compatível com o princípio da livre iniciativa? –, desviando o olhar daquela que é a questão real a ser resolvida: permitiremos a coisificação ampla de homens e mulheres trabalhadoras ou preservaremos um patamar mínimo de dignidade nas relações de trabalho?
Entretanto, sendo inevitável a manifestação do Supremo Tribunal Federal, uma vez que reconhecida a repercussão geral da matéria, que a Corte a enfrente nos seus devidos termos, e não a esconda por detrás de um discurso jurídico, pretensamente técnico e isento.
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Pedro Mahin Araujo Trindade é especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pelo Centro Universitário IESB/DF, mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e advogado.
João Gabriel Pimentel Lopes é mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e advogado.
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