segunda-feira, 4 de julho de 2016

A reforma da Previdência entre o déficit financeiro e o déficit democrático



Noa Piatã Bassfeld Gnata[1]

Viés oportuno, dialogando com os Juízes e Juízas para a Democracia, para denunciar o caminho torto pelo qual está sendo conduzida a reforma da Previdência, o viés da democracia.

O caráter artificioso da legitimação democrática no processo político está exposto em carne viva: enquanto um longo processo – já contam três anos do estado colérico de agitação desde junho de 2013 – de densificação da insatisfação popular distraiu a plateia com o mote do combate à corrupção, no primeiro dia após a abertura do processo de impeachment, com afastamento da Presidente da República, tudo já estava esquecido. Iniciativas legislativas contra a corrupção encontram resistência e não estão na pauta do governo e da mídia.

E, desde então, um pacote de reformas econômicas, trabalhistas e sociais, construído a portas fechadas pelos setores que financiaram todo aquele discurso contra a corrupção, veio à tona, não precedido de debate público. O projeto de Meirelles – que só assumiu quando se lhe foi garantida autonomia e que não seria incomodado nem mesmo por Temer – envolve reformas legais e constitucionais estruturantes das relações de produção e de convívio social em geral, e deveria ser amplamente discutido no parlamento e com a sociedade civil. Mas só será proposto “em 30 dias” e assim que houver “certeza” de que será aprovado.

A legitimidade política provisória para conduzir reforma ampla e estruturada, própria do projeto político que tem sido derrotado em todas as eleições gerais desde 2002, em si, poderia ser questionada, pois não partiu das urnas, mas de um projeto escrito enquanto o que se debatia era a corrupção e a reforma política. É reforma aristocrática, não é reforma democrática.

Mas esta é uma opinião política, então precisamos de lastro mais denso para objetar o processo de reforma. Poderíamos mencionar os aspectos tributários, como as desonerações que já causaram mais de 400 bilhões de prejuízo desde 2011 às contas da Previdência e dificilmente sejam revogadas pela Fazenda. Ou os aspectos trabalhistas, que com a liberação desordenada das terceirizações sucateará a Previdência Social e extinguirá o FGTS e o Sistema Financeiro de Habitação em poucas décadas, constrangendo os trabalhadores assalariados a alugueres que serão maiores que suas aposentadorias enquanto sobreviverem. Mas abordaremos apenas os aspectos previdenciários.

Enquanto o governo provisório mostra os dados na mão esquerda, movimenta os copos com a direita.

Todo o alarde, aos holofotes, está nos critérios de concessão e reajuste de benefícios, que terão efeitos atuariais de longo prazo: na imposição da idade mínima, na extinção da discriminação de tempo de serviço/contribuição exigido de homens e mulheres, na revogação da garantia do valor mínimo balizado no salário mínimo, na extinção da competência capilarizada das justiças estaduais para decidir matéria previdenciária.

Na outra mão, silenciosamente e longe da opinião pública, a finalidade efetiva e imediata da reforma se encaminha: ampliar a desvinculação de receitas da Previdência de 20% para 30% de seu orçamento para a União. A Previdência arrecadou entre 500 e 600 bilhões de reais por ano nos últimos anos. Isso significa injetar cerca de 50 ou 60 bilhões anuais a mais no Tesouro Nacional, úteis para realizar despesas públicas e evitar aberturas de créditos suplementares, maquiando o cumprimento das obrigações de responsabilidade fiscal. Solução para o Tesouro, problema para a Previdência em médio e longo prazo.

A Previdência é superavitária, e financia o Tesouro. O déficit financeiro (a relação dentre receitas e despesas anuais), do discurso apocalíptico, é uma lenda. O déficit atuarial, por sua vez, é um risco real, agravado ainda mais pela desvinculação de receitas. Medida coerente com a preocupação de longo prazo com a capacidade de benefícios da Previdência seria extinguir, de uma vez, a desvinculação de receitas, e não aumentá-la.

Não bastasse, quanto aos critérios de concessão de benefícios, a confecção de regras transitórias – a história se repetirá, como nas Emendas Constitucionais 20 e 41 – acalmará os ânimos de quem está quase para se aposentar e ajudará a desarticular a população jovem, afetada indiretamente e tão interessada quando aqueles, mas absolutamente alheia ao processo político. Para viabilizar a reforma e dar aparência de diálogo, convocam-se representações sindicais para que concordem, para que entendam a urgência e a excepcional necessidade de renunciar aos direitos dos trabalhadores. Mas não para construir.

A construção democrática somente se daria com diálogo amplo na construção do processo político. Não basta convocar alguns coadjuvantes para revisarem vírgulas, é necessário ver além do discurso de urgência. É necessário ouvir o povo, os juristas e os sociólogos, desde o início, para construir a decisão de reformar os modelos de condições de sobrevivência de todos. É evidente para estudiosos da economia política, por exemplo, que a revogação dos direitos mínimos dos trabalhadores é a própria revogação das condições de reprodução da produção econômica.

Todos os paradoxos entre os motivos e os fins, entre o discurso e a prática, no processo político, recrudescem o imenso déficit democrático estabelecido na condução da República. A Previdência, que deveria atender aos interesses de longo prazo de todos os cidadãos trabalhadores, está atendendo aos interesses transitórios do governo, no afã de desincumbir-se das obrigações – não cumpridas – de responsabilidade fiscal.

O déficit da Previdência não é financeiro, é democrático.




[1]Professor substituto na Faculdade de Direito da UnB. Doutorando e mestre em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da USP – Largo de São Francisco. Membro dos Grupos de Pesquisa Trabalho e Capital – FDUSP e Trabalho, Constituição e Cidadania - UnB. Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário – IBDP. Advogado estabelecido no Paraná e em Brasília.

FONTE: Jornal da Associação Juízes para a Democracia, n. 70, ano 16, Fev-Abr 2016.



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