segunda-feira, 7 de maio de 2018

Artigo: "30 anos: crise e futuro da Constituição de 1988"

Podemos identificar dois desfechos possíveis para a crise constitucional desencadeada em 2016
Cristiano Paixão

presente artigo inicia uma série dedicada aos 30 anos da Constituição de 1988. Entendemos ser relevante um esforço de reflexão acerca do legado do texto constitucional e dos desafios que se colocam para a sua vigência no futuro. Este espaço será compartilhado por professores e pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (UnB – Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição), por componentes do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e por pesquisadores convidados.
A Constituição está prestes a completar 30 anos de vigência exatamente num contexto histórico em que o Brasil experimenta sua maior crise constitucional desde 1988. É necessário, então, compreender as dimensões da crise, as perspectivas para o futuro e as alternativas disponíveis.
O conceito de crise já perdeu muito de seu componente de excepcionalidade. A gradativa normalização do conceito – fala-se a todo momento em crise política, crise econômica, crise de valores, crise da civilização – tem duas consequências: uma espécie de banalização da ideia de crise e uma certa opacidade do conceito. Nem sempre é fácil separar o normal do extraordinário; aumenta o uso da noção de “crise estrutural”, que por si só desafia a excepcionalidade da situação de crise e permite antever que o mundo político e institucional moderno contempla essa ideia desde suas primeiras manifestações. Em outras palavras: viver sob o desenho institucional construído a partir da modernidade significa estar sujeito a constantes crises. Uma delas é a crise constitucional.
É natural – e até previsível – que as democracias contemporâneas vivam, de tempos em tempos, situações de incerteza e instabilidade. A princípio, as constituições são soluções para as crises políticas – elas indicam o espaço de atuação dos poderes constituídos, estabelecem limites e formas de controle entre poderes. Entretanto, em determinadas circunstâncias, as crises políticas podem levar a uma crise constitucional.
Isso ocorre quando se manifesta a ampliação do espaço de deliberação disponível, com base na constituição então vigente, aos atores e instituições da política e do direito. A crise política assume, assim, uma dimensão constitucional. Ela inclui uma crise da função da constituição, ou seja, a crise apresenta-se quando a constituição é colocada à prova, e os procedimentos ordinariamente disponíveis para o enfrentamento de impasses e discordâncias não são suficientes para resolver o impasse político. Ao persistir a situação de conflito, novas possibilidades são cogitadas e testadas por atores e instituições. Com isso, abre-se o risco de que a solução proposta atinja o núcleo da constituição da comunidade política, a saber, alguma das opções fundamentais contidas no documento constitucional.
A crise constitucional em que estamos inseridos, e que ficou evidenciada cerca de dois anos atrás, ao tempo do procedimento de impeachment da então presidente da República Dilma Rousseff, tem uma característica distintiva: ela é uma crise desconstituinte. Desde 2016, algumas ações adotadas pela coalizão política que se formou para viabilizar o impeachment e sustentar o governo Temer possuem um núcleo comum: a deliberada desfiguração do quadro de direitos fundamentais que é o núcleo da Constituição de 1988.
A promulgação da Emenda Constitucional nº 95, que fixa um teto para os gastos públicos, assim como a aprovação da Lei nº 13.467/2013, a chamada “reforma trabalhista”, são exemplos concretos de um movimento de reação contra a Constituição de 1988, pois subtraem, de forma clara e direta, o direito das próximas gerações de deliberar sobre as modalidades de gasto dos recursos públicos (inviabilizando a concretude de direitos e garantias estipulados ao longo do texto constitucional), e flexibilizam ao extremo o núcleo da proteção social ao trabalhador que a Constituição de 1988 estabeleceu com inegável centralidade.
Podemos identificar, entre várias possibilidades, dois desfechos possíveis para a crise constitucional desencadeada em 2016. O primeiro deles é um gradativo esvaziamento da Constituição de 1988 que conduza a um estado de obsolescência. Se os movimentos desconstituintes persistirem, e novos ataques forem dirigidos ao núcleo do texto ora vigente, não mais será possível restaurar um mínimo padrão de estabilidade institucional, e com isso a história que se iniciou em 5 de outubro de 1988 terá chegado ao seu termo final.
Esse desfecho, porém, não é inevitável e ainda não se configurou.
Desde 1988, o Brasil enfrentou algumas crises políticas e experimentou uma razoável alternância no comando do Poder Executivo federal. A Constituição de 1988 esteve à altura desses desafios – ela forneceu o quadro institucional que permitiu, nos anos de 1995-2002 (era FHC), a aprovação de emendas constitucionais que modificaram elementos da economia e da administração pública com o objetivo de implementar reformas liberalizantes e que diminuíram a presença do Estado na economia e na vida social. No período compreendido entre 2003 e 2014 (era Lula-Dilma), a Constituição absorveu as modificações relacionadas a políticas sociais inclusivas, como a ampliação de direitos sociais (EC nº 72) e a política de valorização do salário mínimo.
A Constituição de 1988 possui, portanto, um grau de abertura suficiente para sustentar o equilíbrio institucional necessário a uma democracia contemporânea. Não há, assim, um vício de origem no desenho constitucional de 1988, que justifique a sua redefinição ou a substituição do texto constitucional. Isso permite afirmar que um segundo desfecho para a atual crise é possível e desejável. Ele envolve, antes de tudo, a retomada do compromisso com o sistema de regras e princípios presente na Constituição em vigor.
As constituições democráticas são marcadas por uma abertura para o futuro. São documentos constitucionais que devem ser apropriados por gerações que se sucedem na experiência histórica de uma comunidade política. Essas gerações são responsáveis pela tarefa de conceder sentido e atualização a determinados preceitos originais do texto. No caso brasileiro, em que a Constituição de 1988 afirmou o processo de redemocratização após uma longa ditadura, e no qual persistem índices alarmantes de desigualdade (que aumentaram, aliás, na atual crise constitucional), dois daqueles preceitos originais permanecem atuais: liberdade e igualdade. As gerações sucessivas terão, contudo, uma tarefa adicional, que é a de restabelecer a ordem constitucional abalada com a crise que foi desencadeada em 2016. Para isso, será necessário contrapor uma resistência aos impulsos desconstituintes, sob a forma de um movimento. Um movimento reconstituinte.

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