quinta-feira, 3 de maio de 2018

Desejo para o Dia do Trabalhador


“Tanto é o sangue
que os rios desistem de seu ritmo,
e o oceano delira
e rejeita as espumas vermelhas”
Cecília Meireles

O último 1º de Maio foi marcado pelo propósito de corrosão da legislação brasileira, ganhava espaço midiático o discurso da “urgência” da Reforma Trabalhista, em momentos decisivos do que viria a ser a Lei nº 13.467/16.

Os seus defensores proclamavam ser um passo para a modernização do Estado brasileiro, pontapé para a superação da crise econômica e a chegada do tão desejado desenvolvimento.

O que se viu, no entanto, foi a propagação de falas – oficiais e pretensamente legítimas - carregadas de estigmas, imprecisões e lugares-comuns desconectados da realidade. O ano será lembrado pela precarização de dispositivos que garantiam um patamar mínimo de direitos nas relações trabalhistas. Sem pudor, deram curso à vexatória investida de relativizar o conceito de trabalho escravo. Também vicejaram o preconceito e as ações fulminantes contra as estruturas e as instituições destinadas a proteger e valorizar quem vive do trabalho, levando à adesão inclusive de desavisados que delas dependem.

Já em 2018, malogrou a MP 808/2017, que prometia neutralizar, minimamente, pontos da Reforma, e se revelou a chocante notícia de que um Tribunal Regional do Trabalho homenagearia quem pretende extingui-lo.

Essa abordagem marca a ideia desencantadora do emprego, reforça o sentimento de vergonha de ser celetista, ser fichado, para incentivar o orgulho de ser empreendedor, pessoa jurídica.

É preciso desvelar, no entanto, que máscaras como a autonomia e liberdade, sem que sejam calcadas em igualdade, são na verdade formas de prender e criar miséria, e não de extingui-la. Quando se fala em ter trabalhadores autônomos, donos do próprio negócio, o que se vê é o acirramento do individualismo e da dependência socioeconômica. É apenas uma forma de transferir a responsabilidade social para o indivíduo, que, sozinho, sucumbe.

Quantos são aqueles que afirmam que o trabalhador é empregado por comodismo, falta de iniciativa para ter a própria empresa. Como se fosse sustentável ou mesmo possível um modelo social em que todos são empresários. Ou ainda como se os que hasteiam a bandeira do empreendedorismo efetivamente quisessem que todos os brasileiros fossem e tivessem reais condições de ser seus concorrentes.

Os primeiros dados pós-reforma revelam queda acentuada do número de ações ajuizadas, que, infelizmente, não decorre da criação de empregos formais ou do cumprimento das obrigações trabalhistas pelos empregadores, mas se dá pelo temor de ser punido pelo “atrevimento” de buscar a reparação de direitos lesados.

Na ficção, falando sobre relações de poder, o filme Liga da Justiça (2017) teve um diálogo que chamou a atenção dos fãs. Barry Allen (Flash) pergunta a Bruce Wayne (Batman), qual era seu superpoder. A resposta: “Eu sou rico”. Flash encerra o assunto com um comentário risonho: “é um poder e tanto”!

Na vida real, no último ano, esse superpoder – ser rico e desvalorizar quem vive do trabalho - encontrou terreno fértil, defensores competentes e vítimas desamparadas, como nunca!
A depuração dos discursos, e das práticas, que revelam autêntico preconceito contra quem vive do próprio trabalho é essencial à manutenção e quiçá ao aperfeiçoamento das possibilidades de uma convivência social minimamente civilizada.

A simbologia contemporânea de trabalho atrela-o à dignidade, relação que está estampada dentre os princípios fundamentais da nossa Constituição, logo no início, e perpassa todo o seu texto, que funda a ordem social tendo como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

O Dia do Trabalhador é dia de luta, de lembrar conquistas obtidas com o derramamento de sangue. O ciclo passado pode ter sido de ataques e ferimentos, mas o novo há de ser de retomada, de resgate da verdade, dos fatos e dos direitos. Que não seja o ciclo do super-herói, com poderes especiais, mas do anti-herói, cujo poder está em realizar as coisas ditas banais do dia-a-dia e em perceber que a fraqueza dos que aparentam ser superpoderosos é ser nada sem os que trabalham.

Que não fiquemos, como bradou Cecília, “imunes, chorando, apenas sobre fotografias”, que nada mais seja “um natural armar de desarmar de andaimes”, que lembremos desse sangue derramado, e nos armemos novamente para combater o bom combate.

Luisa Nunes de Castro Anabuki
Leomar Daroncho
Procuradores do Trabalho

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Correio braziliense
Dia 30 de abril de 2018
Caderno Direito&Justiça

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