Recomendamos a leitura do texto do Prof. Cristiano Paixão, publicado no Jornal GNN, que replicamos abaixo. A publicação original pode ser consultada no link: https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/covid-19-e-o-oportunismo-desconstituinte-por-cristiano-paixao
Covid-19 e o oportunismo desconstituinte
por Cristiano Paixão
Vivemos uma emergência na saúde pública. Uma pandemia com graves
consequências para o presente e o futuro. Qual é o papel da constituição
nesse contexto?
Decisões difíceis devem ser tomadas, e muitas vezes é
necessário fazê-lo de forma rápida. Isso não significa, porém, que a
constituição tenha sua vigência afastada em tempos de crise. É o
contrário: exatamente nesses momentos devemos nos lembrar das regras e
princípios constitucionais.
Há nessas situações um grande risco para a comunidade política, qual
seja, o de permitir que decisões de longo alcance, que possam afetar a
própria estrutura da ordem constitucional, sejam adotadas de forma
irrefletida, sem debate e ao sabor das maiorias ocasionais. A
Constituição brasileira prevê procedimentos excepcionais, como o estado
de defesa e o estado de sítio, que permitem, por determinado período,
ampliação dos poderes públicos e restrição de algumas liberdades
individuais. Observe-se, aliás, que a pandemia do Covid-19 não constitui circunstância apta a ensejar decretação do estado de sítio,
conforme acertada e oportuna manifestação do Conselho Federal da OAB. A
legislação também prevê o estado de calamidade pública e a declaração
de emergência em saúde pública de importância nacional, em que as
funções do governo são redimensionadas.
Esses mecanismos, contudo, existem para a defesa da
constituição. Eles permitem decisões ágeis, mas impõem prazos para
execução das medidas e não desativam os órgãos de controle político e
administrativo. E é importante que seja assim, para que se evitem abusos
no uso desses instrumentos. Uma crise, por mais grave que seja, não é uma carta branca para alteração permanente da ordem constitucional. Quando essa orientação é esquecida, graves desdobramentos se produzem.
Vejamos o que ocorreu nos Estados Unidos da América no passado
recente. Após os atentados de 11 de setembro de 2001, o Congresso,
pressionado pelo Executivo, aprovou em poucos dias uma lei antiterror
(“Patriot Act”) sem nenhum debate público ou discussão em comissões.
Houve aumento de poderes investigatórios das forças policiais e de
segurança e diminuição de garantias como privacidade e devido processo
legal. Muitos artigos tinham vigência limitada no tempo (“sunset
clauses”). Com o aprofundamento da “guerra contra o terror” da era Bush,
a vigência dessas normas foi prorrogada. Cerca de 14 mudanças
temporárias tornaram-se definitivas, e outras partes do Patriot Act
continuam em vigor “temporariamente” até hoje, por meio de novos
adiamentos.
Uma situação similar ocorre com uma das maiores violações a direitos
humanos da era contemporânea: o campo de prisioneiros de Guantánamo.
Criado em 2001 numa base militar norte-americana em território cubano, o
campo chegou a comportar mais de 600 prisioneiros em situação ilegal
(sem proteção das normas internacionais ou acesso a cortes de justiça
nos Estados Unidos). Houve casos de tortura, greves de fome e suicídios
de detentos (ao menos três prisioneiros tiraram a própria vida, além de
muitas outras tentativas). Hoje existem cerca de 40 prisioneiros em
Guantánamo. Não é possível imaginar se e quando serão libertados, pois o
Congresso proibiu o fechamento do campo e também vedou a transferência
dos detentos para prisões em território norte-americano. Guantánamo
recebeu os primeiros prisioneiros em janeiro de 2002. Em abril de 2020,
quando estas linhas foram escritas, o campo continuava em funcionamento.
E agora pensemos no caso brasileiro. Tive oportunidade de afirmar, em textos escritos a partir de 2016, que o Brasil vem sendo submetido a uma espécie de “pressão desconstituinte”.
Forças políticas e sociais (especialmente ligadas a setores do
empresariado) têm defendido (e, em alguns casos, lograram aprovar)
medidas contrárias ao arcabouço normativo estabelecido na Constituição de 5 de outubro de 1988.
A tramitação e promulgação da EC 95 (referente ao teto de gastos), a
aprovação de normas jurídicas que desconstituem o sistema de proteção ao
trabalho (Leis nº 13.429 e 13.467, de 2017), a edição de norma
administrativa flexibilizando o conceito de trabalho escravo (Portaria
1.129/2017, posteriormente revogada) e a extinção pura e simples do
Ministério do Trabalho (no início de 2019) são exemplos de atos
legislativos e administrativos que contrariam o disposto na Constituição
da República.
É nesse panorama de crise com tendências desconstituintes que o
Brasil enfrenta a pandemia do novo coronavírus. Já nos primeiros dias da
emergência sanitária foi possível chegar a algumas conclusões: (1) o
SUS é essencial ao combate ao Covid-19, especialmente pela sua
universalidade e sua natureza pública; (2) os contratos de trabalho
precisam ser protegidos por medidas extraordinárias, diante da
necessidade de paralisação de grande parte da atividade econômica, em
razão das medidas de isolamento social; (3) os trabalhadores chamados
“informais” necessitam de igual ou maior proteção social, decorrente da
sua própria situação de precariedade decorrente da inexistência de
vínculo empregatício.
A expressiva maioria dos países afetados pela pandemia tem procurado
reforçar o sistema público de saúde e proteger os trabalhadores em
geral. No Brasil, contudo, algo diverso acontece. O governo federal
editou a Medida Provisória nº 927, que permitia a suspensão do contrato
de trabalho sem remuneração. Após reação negativa da sociedade civil, a
medida foi parcialmente revogada. Logo após, outra MP foi editada, a de
nº 936, que retomou várias violações existentes na anterior. Uma delas,
particularmente grave, afronta a Constituição da República ao permitir
um contrato individual de trabalho para reduzir jornada de trabalho e
salário (o texto exige a negociação coletiva). Em manifestação
recente, o ministro da economia afirmou que a pandemia do Covid-19 seria
motivo para aprofundar as mudanças iniciadas com a reforma trabalhista,
com a retirada de encargos sobre o contrato de trabalho.
Estamos
diante de uma postura oportunista. Setores do governo e do empresariado
vislumbram na crise atual uma “janela de oportunidade” para impor, em
tempos de emergência, mudanças permanentes nas relações de trabalho.
Procuram reescrever a história constitucional, diminuindo ainda mais a
função pública do Estado e dos direitos sociais quando uma crise nos
mostra a sua importância e centralidade.
Gerações de brasileiros – trabalhadores, estudantes, médicos,
empresários, líderes religiosos, políticos – lutaram, em tempos e modos
diversos, para que o Brasil voltasse a ser uma democracia após 21 anos
de arbítrio e violência. A Constituição de 1988 abriu uma perspectiva
para o futuro. Muito do trabalho de implementação e vigência do texto
está por ser feito. Mas deve haver um futuro, e ele não pode
ser subtraído da atual geração e nem das próximas, também destinatárias
do texto constitucional. Em tempos de crise, que a postura seja de
afirmação da Constituição, contra toda e qualquer manifestação de
oportunismo desconstituinte.
Cristiano Paixão – Subprocurador-Geral do
Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação
Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Professor Adjunto da
Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades
de Macerata e Sevilla. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos,
Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e
“Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi
Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e
Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de
Memória e Verdade da UnB
Nenhum comentário:
Postar um comentário