quarta-feira, 18 de junho de 2014

A TERCEIRIZAÇÃO E O SUPREMO (PARTE 3) - Sobre a liberdade de precarizar: o Supremo e o recuo na história


Lara Parreira de Faria Borges
Renata Queiroz Dutra

Foi reaberta a disputa em torno da questão da terceirização em nosso país. Após o embate no Congresso Nacional, deflagrado pelo Projeto de Lei nº 4330, de autoria do Deputado Sandro Mabel, que visava regulamentar a terceirização trabalhista, ampliando suas possibilidades para toda e qualquer atividade empresarial, se reinstala, agora em um foro diferente, a luta na qual os trabalhadores outrora saíram vitoriosos. 

No calor do avanço do processo legislativo do PL nº 4330 (agosto e setembro de 2013), o movimento sindical brasileiro manifestou sua força e, ao custo de muita mobilização e articulação política, amplo processo de convencimento público, ocupações de comissões da Câmara dos Deputados (algumas dando ensejo a repressões policiais com uso de spray de pimenta), conseguiu retirar de pauta o referido projeto de lei. Com isso, reafirmou-se a permanência da normatização trabalhista vigente, que, amparada na Consolidação das Leis do Trabalho, elege a relação bilateral de emprego como regra para as relações de trabalho e autoriza, apenas a título excepcional, as possibilidades de terceirização previstas na legislação esparsa (por exemplo, art. 10, § 7º, do Decreto-Lei n.º 200/67, Lei nº Lei nº 5.645/70, Lei nº 6.019/74 e Lei nº 7.102/83, posteriormente ampliada pela Lei nº 8.863/94). Desde então a questão está parada no Congresso Nacional (confira o andamento do PL).

Menos de um ano depois de reafirmada a opção legislativa por um determinado modelo de regulação das relações de trabalho, o Supremo Tribunal Federal, no bojo do ARE 713.211/MG, reconhece a repercussão geral da terceirização de atividade-fim, por uma suposta violação da liberdade de contratação (evidentemente a referência foi exclusiva à liberdade de contratação dos empregadores) também supostamente inserida no art. 5º, II, da Constituição Federal, como bem relatado aqui e problematizado aqui.


A discussão é a mesma. Os argumentos levantados por cada um dos lados também pouco se alteraram.

O empresariado entende que a terceirização é a forma mais moderna de organização produtiva e que é impossível atuar competitivamente no mercado globalizado arcando com os custos e com a logística de empresas com grande número de trabalhadores contratados diretamente.

Os trabalhadores, por sua vez, reclamam um modelo de desenvolvimento que respeite os valores sociais do trabalho. Associam a terceirização e a redução de custos que ela promove à precarização das relações de trabalho, à exposição da vida e da saúde dos trabalhadores, à fragilização de categorias sindicais, entre outras consequências.

Como transplantar a agenda política ricamente criada pelo debate público que o direito de voto proporciona (URBINATI, 2006) ao espaço da Corte Constitucional? Como assegurar que a correlação de forças efetivamente existente na sociedade a respeito de questões políticas fundamentais seja traduzida na composição da Corte Constitucional?

Em 1905, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América entendeu no julgamento do caso “Lochner vs. New York” que a décima quarta emenda à Constituição americana garantiria a inconstitucionalidade de uma lei que regulava a jornada máxima que padeiros poderiam trabalhar diária e semanalmente. 

Para melhor análise desta emblemática decisão da Suprema Corte é necessário o conhecimento do teor desta emenda. Eis sua redação:

“Nenhum Estado poderá fazer ou executar qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem qualquer Estado privar qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal; nem negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis.”


Com base nesta emenda, a Suprema Corte entendeu que seria incabível a regulação por parte do estado na forma de legislação trabalhista da jornada de trabalho dos padeiros, por não estar provada a condição de insalubridade.

Interessante perceber que o voto vencedor na decisão fundamentou a inconstitucionalidade da lei do estado de Nova Iorque na violação do princípio do devido processo legal, que atua como óbice a qualquer restrição à liberdade e à propriedade. Assim, 5 contra 4 ministros da Suprema Corte americana compreenderam que uma decorrência lógica do princípio do devido processo legal seria a liberdade de contratação. Segundo a posição dominante no julgamento, na relação de trabalho ambas as partes possuem liberdade e deve haver respeito tanto à liberdade de contratar como à liberdade de vender a força de trabalho. Assim, uma lei estadual que restringisse a jornada de trabalho estaria limitando a liberdade do trabalhador vender sua força de trabalho ao empregador, de forma a violar frontalmente a décima quarta emenda à Constituição americana.

Importante observar as semelhanças entre esta decisão da Suprema Corte americana -  proferida em 1905 (início do século XX) e inclusive superada pela própria Suprema Corte com o caso “West Coast Hotel vs. Parrish” em  1937 – e o reconhecimento da repercussão geral no ARE 713.211/MG pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro em maio de 2014 (pleno século XXI).

Com as devidas proporções e adequações em relação ao objeto discutido, ambos os casos possuem em comum a temática da regulação da contratação da força de trabalho.

Tanto a Suprema Corte americana em 1905 quanto o Supremo Tribunal Federal brasileiro em 2014 trataram da regulação estatal das relações de trabalho sob a ótica da liberdade de contratação partindo de princípios constitucionais mais amplos e abstratos que nada dizem especificamente sobre relação de emprego, tampouco referem-se aos princípios fundadores do direito do trabalho. No caso norte-americano, o princípio matriz para a decisão foi o devido processo legal que resguarda a vida, a liberdade e a propriedade; e, no caso brasileiro, o princípio da legalidade (segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” - artigo 5º, II, da Constituição da República Federativa do Brasil).

Observa-se que desses dois princípios abstratos (devido processo legal e legalidade) as Cortes conseguiram extrair o mesmo princípio: “a liberdade de contratação”. Entendeu-se, em ambas as situações, que as relações de trabalho podem ser tratadas pelo princípio da liberdade de contratação, esquecendo-se de que há um desnível de forças e poderio econômico entre as partes contratantes. No caso Lochner vs. New York essa premissa mostrou-se bastante evidente por este trecho do voto vencedor:

“O direito geral de fazer um contrato em relação ao seu negócio é parte da liberdade protegida pela Décima Quarta Emenda, e isso inclui o direito de comprar e vender de trabalho, exceto quando controlada pelo Estado no exercício legítimo do seu poder de polícia. É claro que a liberdade de contrato relativo ao trabalho inclui ambas as partes ligadas a ele. Uma das partes tem tanto direito de compra  quanto a outra tem para vender o trabalho”.
          


No caso do ARE 713.211, o Ministro Relator entendeu o seguinte:

“O thema decidendum, in casu, cinge-se à delimitação das hipóteses de terceirização de mão-de-obra diante do que se compreende por atividade-fim, matéria de índole constitucional, sob a ótica da liberdade de contratar, nos termos do art. 5º, inciso II, da CRFB.”

Segundo as análises de constitucionalistas que estudam o caso americano, como Cass Sustein, a opção da Suprema Corte americana articulou-se no discurso de que o governo não poderia tomar partidos, mas deveria prezar por uma atuação neutra e imparcial com relação às partes contratantes, e a única forma de atingir esse objetivo seria deixando de interferir na liberdade dos particulares. A Corte desconsiderou a desigualdade de forças real existente no mundo do trabalho, entendendo que os particulares são pares.

O conceito de liberdade é entendido por muitos liberais, como John Rawls e Isaiah Berlin, como a ausência de interferência por parte do governo na vida dos particulares. Assim, toda interferência seria sinônimo de ausência de liberdade para os militantes de direita. Uma crítica direcionada a esse conceito de liberdade é formulada por G. A. Cohen, quando afirma que essa compreensão de liberdade garante apenas a não interferência no direito de propriedade privada, “mas apoia a interferência no acesso dos pobres à mesma liberdade privada e por consequência não pode defender o direito de propriedade invocando o valor de liberdade no sentido de não-interferência”.

Assim, observa-se como a liberdade de contratação, na verdade, apenas serve de suporte para o empregador que contrata o serviço do padeiro no caso americano, e para as empresas tomadoras e prestadoras de serviços no caso brasileiro. Não se vislumbra uma liberdade daqueles que efetivamente vêem sua força de trabalho comercializada em nenhum dos casos.

O trabalhador terceirizado que figura na relação triangular como um objeto da relação comercial firmado entre empresa prestadora de serviços e empresa tomadora de serviços, deslocado da realidade de ambas as empresas temporal e espacialmente (PAIXÃO, LOURENÇO, 2009), não tem vontade contratual alguma a ser manifestada senão a necessidade de sobrevivência a partir do seu trabalho.

Na terceirização, os detentores dos meios de produção, os proprietários, possuem a liberdade de contratação a seu favor, já os destituídos de propriedade contam apenas com uma única alternativa que é a extração da dupla mais valia de sua força de trabalho, sem qualquer perspectiva de liberdade.

O argumento de neutralidade do Estado em face de conflitos ou mesmo a perspectiva de preservação da autonomia das partes em conflitos assimétricos desconsidera o percurso histórico de afirmação e evolução da proteção ao trabalho, que superou essas duas equivocadas premissas.

Primeiramente, não existe neutralidade do Estado em face da regulação do trabalho, pela simples razão de que não existe, em uma sociedade capitalista, vácuo de regulação. Ou bem o Estado regula o trabalho, o fazendo mais ou menos intensamente, ou as leis do mercado o regularão, na exata medida da extensão que o Estado deixa de normatizar. Portanto, não existe a possibilidade de “não regular” certas formas de contratar o trabalho: o estado tão-somente consente e chancela que as leis do mercado regulem o trabalho, assumindo a consequência óbvia de que este seja oferecido, remunerado e condicionado pelas regras da oferta e da procura e pelo menor custo possível, ainda que ele implique periclitação da vida, da saúde e da subsistência da classe que vive do trabalho em favor do laissez faire.

Segundo, falar em liberdade de contratação e em autonomia da vontade numa relação entre duas partes tão desiguais somente significa entregar o trabalhador ao arbítrio de quem o emprega. Ou até mesmo no caso de se considerar que a liberdade de contratação circunscreve-se às empresas tomadora e prestadora de serviços, tem-se a completa desconsideração do trabalhador terceirizado como parte dessa relação triangular.

É que o trabalhador, ao celebrar contrato de trabalho, vincula a sua força de trabalho em proveito do empreendimento econômico do sujeito que o contrata, mas a inapartabilidade entre sujeito e objeto revela a dificuldade de tratar, como pretenderia a lógica do sistema capitalista, da força de trabalho empenhada pelo obreiro como uma mercadoria.

Diante desse contexto, o Direito do Trabalho, surge, na gênese capitalista, da necessidade de uma ação estatal que, por meio de “contramovimentos” protetores que limitassem o mecanismo autodestrutivo do mercado capitalista, obstasse a transformação do trabalho humano em mercadoria (POLANYI, 2011).

Uma das primeiras afirmações principiológicas proferidas pela Organização Internacional do Trabalho não foi outra que não a de que o trabalho humano não é uma mercadoria, conforme consta da Parte XIII do Tratado de Versalhes, da Declaração de Filadélfia de 1944 e, mais recentemente, da Declaração de Princípios Fundamentais da OIT de 1998.

Nesse sentido, é imperativa a conclusão de que proteger o trabalho prestado por um indivíduo significa proteger a dignidade desse próprio indivíduo, que dele não se aparta e por meio dele se afirma.

O contrato de trabalho, assim, representa um contrato de adesão, que demanda a interferência estatal a fim de evitar que a desigualdade real entre as partes suplante a igualdade formal e submeta o trabalhador ao arbítrio empresarial (GOMES, 2005). “É restringindo-a [a liberdade de contratar] que consegue desabilitar o poder individual dos capitalistas, pois que à sombra dessa liberdade eles haviam estabelecido, no mundo do trabalho, a ditadura do patronato” (GOMES, 1954).

Caso o Supremo Tribunal Federal brasileiro, após reconhecer a repercussão geral sob a ótica da liberdade de contratação, adote o mesmo caminho perfilhado no caso Lochner v. New York, o Brasil terá não apenas um retrocesso de mais de um século em teoria constitucional, como também estará bradando em nome da liberdade quando a única face que os trabalhadores poderão vislumbrar será o aprisionamento de sua força de trabalho.

REFERÊNCIAS:

Lochner v. New York – 198 U. S. 45 (1906). Disponível em: < http://supreme.justia.com/cases/federal/us/198/45/case.html > Acesso em 11.6.2014.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ARE 713.211/MG. Embargos de Declaração no Agravo Regimento no Recurso Extraordinário com Agravo. Disponível em : <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5667074> Acesso em 11.06.2014.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm > Acesso em 11.6.2014.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

COHEN, Gerald. Freedom and Money. In: COHEN, G. A. On The Currency of Egalitarian Justice, and other essays in political philosophy. Michael OTSUKA (org). Princeton: Princeton University Press, 2011, p. 166-192.

GOMES, Orlando. Direito do Trabalho: Estudos. 3ª Edição. Bahia, 1954.

GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

MANIN, Benanrd; PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Susan. Eleições e representação. Lua Nova, São Paulo, 67, p. 105-138, 2006.

PAIXÃO, Cristiano; LOURENÇO FILHO, Ricardo Machado. Entre a indisponibilidade e a negociação: as normas coletivas como fontes do direito do trabalho. Caderno Jurídico. Escola Judicial do TRT da 10ª Região. Brasília, ano 3, volume 3, n. 4, julho/agosto de 2009.

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

SUSTEIN, Cass R. Lochner’s Legacy. In: Columbia Law Review, Vol. 87:873, 1987, p. 873-919.

URBINATI, Nádia. O que torna a representação democrática? Lua Nova, São Paulo, 67, p. 191-228, 2006.

***

Lara Parreira de Faria Borges é mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e assessora de Ministra do TST.


Renata Queiroz Dutra é mestre e doutoranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, analista judiciária e assessora de Ministro do TST.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Nota pública: em favor do direito de greve - A Associação Juízes para a democracia se manifesta em face da greve dos metroviários

Publicada originalmente aqui.

***
São Paulo, 11 de junho de 2014

 Nota pública: em favor do direito de greve

A Associação Juízes para a Democracia, entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem a público condenar os ataques ao direito de greve dos metroviários.

O art. 9º da Constituição Federal determina que “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”.

A greve é um direito que consiste justamente na possibilidade de causar prejuízos a outrem, em especial ao empregador, mas também de gerar perturbação, incômodos e transtornos para os usuários de serviços públicos, como o transporte coletivo. Impedir a existência desses prejuízos e transtornos é esvaziar o direito e torná-lo mera declaração sem efeito prático.

A greve dos metroviários revela que nossas instituições ainda encaram esse direito a partir de uma mentalidade autoritária e incapaz de conviver com o conflito social.

Decisões judiciais que determinam a manutenção de 100% dos trabalhadores em serviço, sob pena de pesadas multas diárias, inviabilizam o exercício do direito, pois se cumpridas retiram o poder de pressão do movimento e se descumpridas geram a declaração de abusividade da greve.

A utilização da Polícia Militar para reprimir os trabalhadores grevistas que exerciam o seu lídimo direito de realizar piquetes ofende o art. 6º da Lei n. 7.783/89, segundo o qual “são assegurados aos grevistas, dentre outros direitos: I – o emprego de meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve”. Além da violência com que tem atuado, a presença da polícia inibe a atuação dos grevistas e incentiva a associação do movimento com atos ilícitos.

A dispensa de 42 trabalhadores por justa causa não encontra fundamento em nossa legislação e constitui ato arbitrário, que ofende os princípios da legalidade e da moralidade, que devem balizar a atuação do Poder Público. As consequências decorrentes da declaração judicial de que a greve é abusiva são aplicadas a toda categoria profissional, enquanto ente coletivo, e não cabem punições individuais, a não ser em caso de ilícitos ou crimes, que devem ser apurados segundo a legislação trabalhista, civil ou penal (art. 15 da Lei 7.783/89).

No caso dos metroviários, contudo, as dispensas têm intuito de retaliar e desestimular os trabalhadores a exercerem o direito de greve, de modo que constituem ato antissindical vedado por nosso ordenamento jurídico.

Por todo o exposto, é necessário o imediato afastamento da Polícia Militar das manifestações decorrentes do movimento grevista e o cancelamento das dispensas, sob pena de grave ofensa ao Estado Democrático de Direito.

André  Augusto Salvador Bezerra
Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia

Terceirização e trabalho análogo ao escravo: coincidência?

Vitor Araújo Filgueiras[1]


Dois dos fenômenos do chamado mundo do trabalho mais divulgados, pesquisados e debatidos no Brasil nas últimas duas décadas são a terceirização e o trabalho análogo ao escravo.
Esse dois fenômenos estão envoltos em ferrenha disputa no bojo das relações entre capital e trabalho, assim com no conjunto da sociedade, pois constituem, respectivamente, estratégia central no atual perfil predominante de gestão do trabalho e o limite do assalariamento no capitalismo brasileiro.
Não por acaso, a luta tem início na definição dos seus próprios conceitos, em dois níveis: 1- na apreensão de suas naturezas e características enquanto fenômenos sociais; 2- na demarcação dos limites e conteúdos da sua regulação, especialmente pelo Estado, também denominada como definição jurídica.
A forma de apreensão do primeiro condicionará fortemente a tomada de decisões que constitui o segundo. Afinal: o que é trabalho análogo ao escravo? O que é terceirização?
Sendo as normas relações sociais, eles existem na medida em que se impõem em determinados tempo e espaço, por e entre entre determinados agentes, sejam eles objetos ou executantes da regulação (isso vale para portarias, leis, regras, princípios, ou qualquer que seja a designação dada à relação social). Destarte, não existe uma verdade abstrata ou a priori de norma nenhuma, ou a “correta interpretação da norma”. A fronteira da legalidade é aquela que se impõe pelos agentes que disputam a interpretação dos textos (e quaisquer outros instrumentos) e desse modo constituem a regra. Não compreender isso é fetichizar o direito e inserir no plano místico qualquer tentativa de debate[2].
Assim, neste pequeno texto acerca da relação entre terceirização e trabalho análogo ao escravo, não será feito qualquer discurso retórico que aspire prescrever que “isso” ou “aquilo” é legal ou ilegal. Mesmo a análise da legalidade no mundo real, ou seja, das relações concretamente estabelecidas entre os agentes de regulação, não fará parte do escopo do artigo, dentre outras razões, pela conjuntura de sua mutabilidade.
Estamos na iminência de possível inflexão da regulação da terceirização e do trabalho análogo ao escravo no Brasil. Quanto a este último, foi promulgada ontem (05/06/2014) emenda à Constituição que prevê a expropriação de propriedade na qual for flagrada a exploração de trabalhadores nessas condições. Contudo, empregadores urbanos, rurais e suas entidades representativas estão tentando aproveitar essa mudança para regulamentar a emenda alterando o conceito de trabalho análogo ao escravo, restringindo o crime à coerção individual direta e, com isso absolvendo todas as formas de exploração típicas da coerção do mercado de trabalho, que são aquelas próprias do capitalismo[3].
Quanto à terceirização, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu reconhecer repercussão geral à decisão que será tomada em processo sobre o tema[4], que servirá como referência para todas as ações que tramitam atualmente e que venham a subir ao Supremo. Desse modo, servirá como precedente fortíssimo à atuação de todo o Judiciário, demais instituições de regulação do trabalho e, em especial, às empresas.
Em suma, o STF poderá dar enorme contribuição à restrição ou flexibilização das fronteiras efetivamente estabelecidas pelas instituições do Estado, até momento, no tratamento da terceirização.
Neste momento crítico, o objetivo geral deste breve artigo é apresentar algumas características da natureza dos fenômenos a partir da relação entre eles, seja lá qual for a regulamentação que o Estado estabeleça sobre eles.
Assim busca-se contribuir com algumas luzes sobre o que, de fato, são terceirização e trabalho análogo ao escravo, para que se tenha consciência sobre o que se está atuando, seja combatendo, consentindo ou estimulando.
O objetivo específico do artigo é apresentar subsídios à pergunta do seu título: a relação entre trabalho análogo ao escravo e terceirização é contingencial? O principal argumento defendido, com base em uma série de indicadores, é que existe forte relação entre a ocorrência de trabalho análogo ao escravo e a terceirização. Isso porque o trabalho análogo ao escravo no Brasil é limite da relação de emprego, e a terceirização é uma estratégia de gestão do trabalho que objetiva justamente driblar esses limites (seja ele representado por sindicato, direito do trabalho, etc.) impostos ao assalariamento. É essa relação que explica a ampla prevalência de trabalhadores terceirizados entre aqueles submetidos s condições análogas à de escravos.
A análise do texto é baseada no universo dos relatórios de ações de combate ao trabalho análogo ao escravo do Ministério do Trabalho. Trata-se, portanto, da totalidade dos resgates ocorridos no país nos anos investigados, quais sejam: 2010, 2011, 2012 e 2013. Além dos dados agregados, foi observada e incidência da terceirização à luz da condição de formalização dos trabalhadores e por atividade econômica selecionada.

[1] Doutor em Ciências Sociais (UFBA), pós-doutorando em Economia (UNICAMP), Pesquisador de Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT) da UNICAMP, auditor fiscal do Ministério do Trabalho, integrante do grupo de pesquisa “Indicadores de Regulação do Emprego”, sendo o presente texto desenvolvido no curso das atividades do grupo (http://indicadoresderegulacaodoemprego.blogspot.com.br).
Agradeço às críticas de Dari Krein, Carla Gabrieli, Ilan Fonseca, Renata Dutra. Assumo integralmente a responsabilidade pelo conteúdo e eventuais inconsistências do texto
[2] Uma análise sobre o tema consta no capítulo 3 de FILGUEIRAS, Vitor. Estado e direito do trabalho no Brasil: regulação do emprego entre 1988 e 2008. Salvador, UFBA, 2012. Disponível em: http://indicadoresderegulacaodoemprego.blogspot.com.br
[3] Ver, por exemplo: “Ruralistas tentam descaracterizar o que é trabalho escravo” (obtido em http://www.trabalhoescravo.org.br/noticia/70.), dentre muitas fontes existentes. Sobre a dinâmica de disputa pela regulação, ver: FILGUEIRAS, Vitor. Trabalho análogo ao escravo e o limite da relação de emprego: natureza e disputa na regulação do Estado. Brasiliana – Journal for Brazilian Studies. Vol. 2, n.2, Out. 2013.
[4] O Ministro Luiz Fux deu provimento ao recurso patronal de embargos declaratórios em recurso extraordinário com agravo ARE 713211 MG (STF) -, integralmente acompanhado pelos demais componentes da Turma, para reconhecer repercussão geral ao tema da terceirização de atividade-fim, no dia 1º de abril de 2014. 

***

O artigo completo, com os dados concretos analisados pelos pesquisador, pode ser acessado aqui.

O Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania agradece a Vitor Filgueiras pela autorização gentilmente concedida à publicação do texto nesse blog.



sábado, 7 de junho de 2014

A TERCEIRIZAÇÃO E O SUPREMO (PARTE 2): O STF e a terceirização da política

Pedro Mahin Araujo Trindade
João Gabriel Pimentel Lopes

No último dia 16 de maio, o Supremo Tribunal Federal declarou que a questão referente à terceirização trabalhista oferece repercussão geral (ver relato de João Gabriel Lopes, aqui). Para tanto, valeu-se do debate empreendido nos autos do processo Emb. Decl. no Ag. Reg. no Recurso Extraordinário com Agravo 713.211/MG, sob a relatoria do Ministro Luiz Fux (aqui).
A Corte fundamentou sua decisão no sentido de que “a proibição genérica de terceirização calcada em interpretação jurisprudencial do que seria atividade-fim pode interferir no direito fundamental de livre iniciativa, criando, em possível ofensa direta ao art. 5º, inciso II, da CRFB, obrigação não fundada em lei capaz de esvaziar a liberdade do empreendedor de organizar sua atividade empresarial de forma lícita e da maneira que entenda ser mais eficiente”.
Desse modo, o entendimento alcançado pelo STF nesse caso particular vinculará toda a Justiça do Trabalho, que deverá adotar posicionamento idêntico – quanto à possibilidade de terceirizar a atividade-fim de determinado empreendimento empresarial – em situações semelhantes.
Os termos em que afirmada a repercussão geral da matéria – a partir da livre iniciativa e da correspondente liberdade de contratar – sugerem uma leitura seletiva do texto constitucional, que precisa ser expandida se pretendemos ter a dimensão exata do embate político que se põe em marcha. Isso porque a livre iniciativa, assim, como o próprio trabalho, é qualificada pela Constituição como um valor social e, somente enquanto tal, é estabelecida como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil ("A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos (...) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa").
Embora seja comum a leitura do princípio da livre iniciativa de forma dissociada de seu adjetivo “valor social”, a rigor, o texto constitucional não permite uma interpretação estritamente individualista desse princípio, como pode, à primeira vista, transparecer da decisão que afirmou a repercussão ampla da matéria atinente à terceirização. Na verdade, a interpretação isolada da livre iniciativa, distanciada de uma perspectiva ampliada da questão, pode acabar por omitir a necessária adequação desse preceito às demandas de integração social e de valorização do trabalho.
Nesse sentido, é imprescindível notar que a própria ordem econômica brasileira fundamenta-se na valorização do trabalho humano (artigo 170 da Constituição). Ou seja, a ordem econômica nacional, tal como estabelecida na Constituição brasileira, prioriza o trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. Assim, se a terceirização, seja de atividade-meio, seja de atividade-fim, produz efeitos nefastos sobre os trabalhadores e sua organização coletiva, ela deve ser terminantemente vedada no Brasil.
Entretanto, toda essa construção técnico-jurídica não é central no debate a respeito da terceirização. O rebuscado discurso técnico oculta a verdadeira face do problema, que é, antes de tudo, de caráter político: qual o modelo de relações de trabalho que pretendemos instalar no país, o de absoluta coisificação do homem e da mulher trabalhadora ou o que lhes garanta um mínimo de dignidade, ao atribuir-lhes a propriedade, no mínimo, de si mesmos, de sua força de trabalho? Deparamo-nos, aqui, com uma encruzilhada. E ambos os caminhos estão igualmente abertos.
Terceirização nada mais é do que a mais ampla expropriação do ser humano, que deixa de ser proprietário, inclusive, de sua força de trabalho, em favor da empresa prestadora de serviços terceirizados. A mercadoria colocada à disposição pela terceirização trabalhista é a energia vital dos empregados e das empregadas dessa empresa. O ser humano torna-se coisa, passível de ser alienado.
Nesse processo, perde-se não só o potencial do trabalho enquanto “meio de inserção socioeconômica e afirmação subjetiva dos seres humanos” (Manifesto de Repúdio ao Projeto de Lei nº 4330/2004, lançado pelo blog “Trabalho, Constituição e Cidadania”, em 4 de setembro de 2013,aqui), como também se fragmentam as categorias de trabalhadores e trabalhadoras, que, embora compartilhem de um mesmo ambiente de trabalho e das tarefas cotidianas, experimentam condições de vida e de trabalho absolutamente distintas, conforme a modalidade contratual a que submetidas/os.
Como ressaltado no Manifesto de Repúdio ao Projeto de Lei nº 4330/2004, a terceirização gera a pauperização dos trabalhadores e das trabalhadoras, a intensificação da sua exploração, mediante a ampliação das jornadas de trabalho, e uma maior rotatividade da mão-de-obra, com o consequente aumento do desemprego. Esse quadro de absoluta precariedade é agravado pela dificuldade encontrada pelos sindicatos obreiros em lidarem com a questão.
A legislação trabalhista constitui um anteparo que protege trabalhadores e trabalhadoras contra todo esse movimento. A autorização da terceirização não só da atividade-fim, como também da atividade-meio implica a supressão das leis trabalhistas naquilo que lhes é mais fundamental, como a subordinação e a pessoalidade diretas (sobre o tema, ler a análise feita por Ricardo José Macêdo de Britto Pereira, por ocasião da votação do Projeto de Lei 4.330/2004, aqui).
Por outro lado, o discurso da maior eficiência na organização empresarial, como proposto pelo Supremo Tribunal Federal quando do reconhecimento da repercussão geral da matéria referente à terceirização trabalhista, tende a sobrevalorizar o aspecto da produção de lucros, sem se preocupar, por outro lado, com o respeito aos direitos mínimos assegurados pela legislação trabalhista. Nesse sentido, os efeitos de tal discurso são, em regra, concentradores e excludentes.
O pronunciamento do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria, a partir de uma leitura fortemente seletiva do que seja a livre iniciativa no contexto da Carta de 1988, acaba por esvaziar-lhe o caráter político. O foco do debate judicial recai sobre o texto constitucional – a proibição genérica de terceirização da atividade-fim é compatível com o princípio da livre iniciativa? –, desviando o olhar daquela que é a questão real a ser resolvida: permitiremos a coisificação ampla de homens e mulheres trabalhadoras ou preservaremos um patamar mínimo de dignidade nas relações de trabalho?
Entretanto, sendo inevitável a manifestação do Supremo Tribunal Federal, uma vez que reconhecida a repercussão geral da matéria, que a Corte a enfrente nos seus devidos termos, e não a esconda por detrás de um discurso jurídico, pretensamente técnico e isento.
* * *
Pedro Mahin Araujo Trindade é especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pelo Centro Universitário IESB/DF, mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e advogado.
João Gabriel Pimentel Lopes é mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e advogado.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Fórum Nacional de combate à terceirização

O Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania" se fez presente hoje, por meio dos seus integrantes, Profª Gabriela Neves Delgado, Prof. Marthius Sávio Lobato, João Gabriel Lopes, Lara Parreira e Renata Dutra, na reunião do Fórum Nacional de combate à terceirização, que se mobiliza em defesa da regulação do trabalho, contra o avanço descontrolado da terceirização.


segunda-feira, 2 de junho de 2014

A TERCEIRIZAÇÃO E O SUPREMO (PARTE 1): E vamos à luta (outra vez)

(por João Gabriel Lopes)


Volta e meia, trabalhadores e trabalhadoras se veem às turras com as tentativas de segmentos do empresariado nacional de, por meio da implantação de sofisticados mecanismos de gestão, empreender a expropriação das garantias fundamentais do operariado consolidadas pelo direito brasileiro.

No ano passado, o intento de aprovação do Projeto de Lei nº 4.330/2004, de autoria do Deputado Federal Sandro Mabel, despertou forte resistência do movimento sindical organizado. Para quem não recorda, trata-se da tentativa de expansão desmesurada das possibilidades de terceirização trabalhista no Brasil, para além das situações já possibilitadas pelo entendimento firmado há mais de vinte anos pela Súmula nº 331, do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

À época, a matéria gerou intensa reflexão do grupo, a qual gerou produções acadêmicas e um manifesto que recebeu a adesão de dezenas de juristas. Contribuímos, assim, para a intensificação dos debates sobre a questão, compondo o conjunto de manifestações que acarretaram uma solução provisória ao problema – a cessação, até o momento, da tramitação da proposta legislativa.

As tentativas de impor graves prejuízos a trabalhadores, no entanto, atacam por várias frentes. E calhou de ser a via judicial a mais recente delas, impondo-se uma intensa mobilização e não menor produção intelectual de quem defende a causa dos direitos trabalhistas no sentido de obstar qualquer forma de intensificação da precarização das condições de trabalho no país.

No último dia 19 de maio, o Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral em matéria de terceirização trabalhista de atividade-fim. O tema foi suscitado pelo relator do ARE (Agravo em Recurso Extraordinário) nº 713.211/MG, ministro Luiz Fux, com a seguinte manifestação, assentida pela maioria dos integrantes da corte, vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Teori Zavascki e a ministra Rosa Weber[1]:

"RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POSSIBILIDADE DE TERCEIRIZAÇÃO E SUA ILÍCITUDE. CONTROVÉRSIA SOBRE A LIBERDADE DE TERCEIRIZAÇÃO. FIXAÇÃO DE PARÂMETROS PARA A IDENTIFICAÇÃO DO QUE REPRESENTA ATIVIDADE-FIM. POSSIBILIDADE.

1. A proibição genérica de terceirização calcada em interpretação jurisprudencial do que seria atividade-fim pode interferir no direito fundamental de livre iniciativa, criando, em possível ofensa direta ao art. 5º, inciso II, da CRFB, obrigação não fundada em lei capaz de esvaziar a liberdade do empreendedor de organizar sua atividade empresarial de forma lícita e da maneira que entenda ser mais eficiente.

2. A liberdade de contratar prevista no art. 5º, II, da CF é conciliável com a terceirização dos serviços para o atingimento do exercício-fim da empresa.

3. O thema decidendum, in casu, cinge-se à delimitação das hipóteses de terceirização de mão-de-obra diante do que se compreende por atividade-fim, matéria de índole constitucional, sob a ótica da liberdade de contratar, nos termos do art. 5º, inciso II, da CRFB.

4. Patente, assim, a repercussão geral do tema, diante da existência de milhares de contratos de terceirização de mão-de-obra em que subsistem dúvidas quanto à sua legalidade, o que poderia ensejar condenações expressivas por danos morais coletivos semelhantes àquela verificada nestes autos.

5. Diante do exposto, manifesto-me pela existência de Repercussão Geral do tema, ex vi art. 543, CPC".

Como é possível notar, o relator entendeu que a consolidada posição da Justiça do Trabalho, de admitir terceirização apenas no caso de atividade-meio e quando não exista pessoalidade e subordinação direta, deve ser discutida à luz da liberdade contratual e do princípio geral inscrito no art. 5º, inciso II, da Constituição: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

É dizer: deve-se verificar se o tratamento judicial do tema, a partir da caracterização, caso a caso, dos serviços prestados como atividade-meio ou atividade-fim, pode persistir sem que haja lei que regulamente a matéria.

De imediato, impõe-se a tarefa de compreender o que está em discussão e quais os efeitos da declaração de repercussão geral, para então se iniciarem os desdobramentos da discussão.

O caso eleito como paradigma para o tema da repercussão geral remonta a um conjunto de denúncias formalizadas junto ao Ministério Público do Trabalho (MPT) em Minas Gerais, pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Extração de Madeira e Lenha de Capelinha-Minas Novas, a respeito das condições de trabalho na indústria de celulose naquela região. De acordo com informações do DIAP, seguiu-se às denúncias um processo de intensa fiscalização do MPT, que “constatou a existência de contratos de prestação de serviços para as necessidades de manejo florestal (produção de eucalipto para extração de celulose). Ao todo foram identificadas 11 empresas terceirizadas para o plantio, corte e transporte de madeira, mobilizando mais de 3.700 trabalhadores”.

A partir do processo de investigação inicial, foram propostas ações civis públicas requerendo a imediata suspensão da terceirização da atividade e a condenação das empresas por danos morais coletivos.

Em uma dessas ações, a empresa Celulose Nipo-Brasileira S.A. (Cenibra) foi condenada pela Justiça do Trabalho da 3ª Região (Minas Gerais), que corretamente aplicou a Súmula nº 331 do TST, para caracterizar as atividades terceirizadas como atividade-fim da empresa.

A empresa recorreu à instância máxima do Judiciário Trabalhista, alegando, em síntese, que sua liberdade de contratar serviços prestados por outra empresa teria sido violada pela decisão condenatória. Em 2012, no entanto, o TST inadmitiu o recurso da empresa, unicamente em razão de questões de índole processual: entendeu-se que a matéria não estava prequestionada e que a pretensa violação à liberdade de contratar, ainda que fosse existente, não teria sido violada diretamente pela decisão, que corretamente aplicara dispositivo de súmula do tribunal.

Ainda naquele ano, o caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), sob a forma de Agravo em Recurso Extraordinário. Em decisão de 19 de abril de 2013, o ministro Luiz Fux negou seguimento ao recurso, pelas mesmas razões que fundamentaram a decisão do TST. Considerou, ainda, que a controvérsia havia sido resolvida na Justiça do Trabalho em Minas Gerais simplesmente mediante a aplicação de normas infraconstitucionais, o que impediria o exame da questão pelo Supremo Tribunal Federal.

A Cenibra recorreu, então, à primeira turma do STF, por meio de um agravo regimental julgado em 11 de junho de 2013. O colegiado reafirmou a decisão anterior do relator. Caso a decisão transitasse em julgado, o processo seria encerrado com uma importante vitória para os trabalhadores do segmento, pois se configuraria o vínculo direto entre aqueles e a empresa que efetivamente tirava proveito do seu trabalho.

No entanto, a Cenibra opôs embargos de declaração à decisão da 1ª turma, reafirmando os fundamentos anteriormente já sustentados e reiteradamente rechaçados pelo Poder Judiciário. Aqui, impõe-se explicar, especialmente a não iniciados nas tecnicalidades do direito, que os embargos de declaração são uma forma de impugnar decisões simplesmente para corrigir omissões, contradições ou obscuridades. Somente em situações absolutamente excepcionais esse instrumento pode servir para modificar decisões já tomadas.

Surpreendentemente, o ministro Luiz Fux voltou atrás no seu posicionamento anterior, passando a compreender que “a proibição genérica de terceirização calcada em interpretação jurisprudencial do que seria atividade-fim pode interferir no direito fundamental de livre iniciativa, criando, em possível ofensa direta ao art. 5º, inciso II, da CRFB, obrigação não fundada em lei capaz de esvaziar a liberdade do empreendedor de organizar sua atividade empresarial de forma lícita e de maneira que entenda ser mais eficiente”.

Diante disso, reconheceu que há matéria constitucional discutida no caso e que, além disso, a questão poderá repercutir “na situação jurídica de milhares de sociedades empresariais brasileiras que contratam força de trabalho por meio do regime de terceirização”.

É claro que uma tal decisão provoca, naqueles que são contrários à precarização do trabalho, uma perplexidade inicial, inclusive em função do risco de eventual decisão favorável à empresa significar uma ruptura com a jurisprudência consolidada das cortes trabalhistas. Porém, a decisão mencionada não antecipa nenhum posicionamento definitivo do STF e deve ser visualizada a partir dos seus efeitos concretos.

Até 2007, todos os recursos extraordinários dirigidos ao STF nos quais se discutia matéria constitucional deveriam ser apreciados pelo tribunal. No entanto, com a Emenda Constitucional nº 45/2004, criou-se um requisito adicional para a admissão desses recursos: a repercussão geral. Esse requisito, um verdadeiro filtro dos casos que podem chegar ao STF, somente foi regulamentado pela Lei nº 11.418/2006, que acrescentou dispositivo ao Código de Processo Civil no qual se prevê que “para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”.

Desde a data em que essa lei entrou em vigor, quando o STF se pronuncia pela existência de repercussão geral de um tema, todos os recursos sobre a mesma matéria que estejam localizados nas instâncias inferiores ficam sobrestados, aguardando o pronunciamento definitivo do Supremo sobre a questão.

Já se pode antever, assim, que a declaração de existência de repercussão geral sobre a matéria da terceirização de atividade-fim terá grande impacto imediato sobre a Justiça do Trabalho. Apenas no âmbito do TST, em dado de 12 de maio de 2014, o tema da terceirização respondia por mais de 6% do volume total de processos, correspondendo a mais de 16 mil casos que poderão ser suspensos, apenas naquela corte, em decorrência da decisão do STF.

Deve-se, alertar, porém, que o reconhecimento da repercussão geral não impede o ingresso com novas ações por trabalhadores que compreendam que seus direitos tenham sido violados. Os processos em primeira instância podem ser regularmente instruídos e julgados, mas os recursos correspondentes poderão ser paralisados em razão do aguardo de pronunciamento definitivo do STF, o qual deverá obrigatoriamente ser observado por todos os tribunais do país que venham a julgar a mesma questão.

É de fato um desafio enorme que se põe diante de nós. Quem luta ao lado de trabalhadores e trabalhadoras, no entanto, não pode sucumbir às ameaças e aos riscos. A política, os direitos e as vidas como disputa: é disso que se trata mais uma vez. Certos e certas do lado em que estamos e do nosso papel nos embates persistentes entre capital e trabalho, tentaremos fornecer, nas próximas semanas, as contribuições que forem possíveis para reforçar as fileiras de quem tem a certeza de que trabalho humano não deve ser mercadoria.

Há uma enorme responsabilidade que agora nos persegue: descortinar a verdade por trás da nuvem de fumaça da terceirização. Por isso é que se faz urgente refletir sobre seus impactos sociais, econômicos, jurídicos, sanitários e políticos, a fim de que se resista, uma vez mais, às investidas contra as conquistas de trabalhadores e trabalhadoras, obtidas a duras penas e ao custo de inúmeras vidas e inúmeros projetos interrompidos.


[1] Não se manifestaram sobre a questão o ministro Joaquim Barbosa e a ministra Cármen Lúcia. De acordo com a previsão regimental, o silêncio no Plenário Virtual implica o acompanhamento do voto do relator.