quinta-feira, 30 de abril de 2020

Livro "Feminismo, Trabalho e Literatura: reflexões sobre o papel da mulher na sociedade contemporânea"

Confira no link a obra coletiva "Feminismo, Trabalho e Literatura: reflexões sobre o papel da mulher na sociedade contemporânea", organizada por Lívia Mendes Moreira Miraglia, Maria Cecília Máximo Teodoro e Maria Clara Persilva Soares. 


segunda-feira, 27 de abril de 2020

Debate "Relações de trabalho no contexto da pandemia: desafios e alternativas" disponível no Youtube

Para quem perdeu ou deseja rever, o debate "Relações de trabalho no contexto da pandemia: desafios e alternativas", realizado hoje (27/04) entre os professores Gabriela Delgado, Renata Dutra, Ricardo Festi e Sadi Dal Rosso, está disponível na nossa página no Youtube. 




Artigo: Covid-19 e a morte da negociação coletiva

Compartilhamos artigo, publicado hoje no Jota, de autoria do Professor Ricardo José Macedo de Britto Pereira.

Covid-19 e a morte da negociação coletiva

Retrocesso à Era Lochner da Suprema Corte Norte-Americana
No dia 17 de abril, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da medida cautelar na ADI 6363, sobre dispositivos da Medida Provisória n. 936 que autorizam redução de salário e jornada, bem como a suspensão dos contratos de trabalho por acordo individual entre empregado e empregador.
O relator, Ministro Ricardo Lewandowski, concedia parcialmente a liminar para dar mais efetividade à previsão da MP, pela qual o empregador, no prazo de dez dias, comunicará aos sindicatos os acordos individuais firmados. No entanto, a maioria não referendou a liminar, mantendo o texto da MP, vencidos o relator e os ministros Edson Fachin e Rosa Weber, que ampliavam a liminar, tendo em vista a previsão constitucional de obrigatoriedade de convenção ou acordo coletivo para a validade desses atos.
A aceitação da MP pela maioria se deu em razão da excepcionalidade provocada pela pandemia da covid-19. Contudo, trata-se de perigoso precedente, na medida em que pode desencadear vários efeitos contrários à Constituição, aprofundando desigualdades, o que agrava ainda mais a crise.
A Constituição de 1988 estabelece uma espécie de reserva negocial para a prática de vários atos por intermédio de convenções ou acordo coletivos, como a redução dos salários. Esses instrumentos coletivos exigem  a participação obrigatória dos sindicatos na negociação coletiva.
O reconhecimento das convenções e acordos coletivos corresponde a uma garantia institucional, encomendando ao legislador um sistema de relações coletivas que funcione satisfatoriamente, e também a direitos subjetivos dos trabalhadores enquanto coletividade.
Isso significa que as questões coletivas devem ser levadas à negociação coletiva e não ser resolvidas por acordos individuais ou unilateralmente pelos empregadores. O STF, ao contrário, autorizou que ato reservado à negociação coletiva seja objeto de acordo individual, com argumentos questionáveis, como segurança jurídica e despreparo dos sindicatos.
A primazia do acordo individual de trabalho, reconhecida pela maioria do STF, encaixa-se perfeitamente na denominada Era Lochner da Suprema Corte Norte-Americana, do início do século XX até a segunda metade década de 30. Esse período foi marcado pela prevalência de acordos individuais, baseada numa suposta garantia constitucional de liberdade contratual, apesar de não expressa no texto da Constituição norte-americana nem em suas emendas.
Alguns exemplos são representativos da linha de pensamento da Suprema Corte naquele momento: o próprio caso Lochner v. New York, julgado em 1905,  Adair v. United States, julgado em 1908, e Adkins v. Children’s Hospital, em 1923.
O caso Lochner referiu-se à lei estadual de New York, de 1895, que limitou a jornada de trabalho dos padeiros em dez horas diárias e sessenta horas semanais. Lochner, dono de uma padaria, insurgiu-se contra autuações em razão de infrações à lei estadual. Seu caso chegou à Suprema Corte e ele se saiu vitorioso. Justice Peckham redigiu a decisão majoritária, no sentido de que a lei não poderia limitar, por exemplo, a intenção do empregado de prestar mais horas para aumentar sua remuneração.
O direito de firmar contratos, segundo a maioria, forma parte da liberdade individual consagrada na 14a. Emenda Constitucional. Peckham asseverou que o trabalho pode ser comprado e vendido como qualquer commodity. Ficaram vencidos Justice Harlan, que destacou a desigualdade entre empregados e empregadores e a necessidade de assegurar o bem-estar dos trabalhadores, e Justice Holmes, afirmando que a Constituição não havia incorporado qualquer teoria econômica, nem assistencialista, tampouco baseada no laissez faire.
No caso Adair, lei federal de 1898 (Erdman Act) proibiu empresas ferroviárias de impor, mediante contrato, a não filiação a sindicato como condição para obtenção de emprego, prática conhecida como yellow dog contracts. Quando os empregados se filiavam a sindicatos, os empregadores acionavam o Poder Judiciário, que expedia ordens (injunctions) para o cumprimento das obrigações contratuais. Em decisão de 1908, a Suprema Corte considerou a lei inconstitucional, por também violar a liberdade contratual.
No caso Adkins, a Suprema Corte em1923 derrubou lei de 1918 estabelecendo salário mínimo para mulheres e jovens no Estado de Columbia, novamente com o argumento da quebra da liberdade contratual pelo poder de polícia estatal.
A grande depressão em 1929 modificou completamente esse quadro. A resposta à crise veio com um conjunto de programas, a partir de um novo pacto social e político (New Deal), baseado na intervenção do Estado na economia, por intermédio de leis e agências governamentais. A mudança já se operava antes mesmo da implementação dos programas, quando em 1932, a Lei Norris La Guardia proibiu a concessão de ordens judiciais contra piquetes de greve e os denominados yellow dog contracts. Três anos depois, em 1935, foi aprovada a Lei de Relações Coletivas (National Labor Relations Act – Wagner Act), numa completa reestruturação política, social e econômica, reservando papel primordial aos sindicatos.
Em 1937, a Suprema Corte encerrou a Era Lochner, no caso West Coast Hotel CO v. Parrish, no qual uma camareira despedida não recebeu o salário mínimo previsto em lei do Estado de Washington. Justice Hughes pontuou a necessária margem do Estado para assegurar saúde e segurança e condições adequadas no trabalho, bem como proteção especial ao trabalho da mulher.
Segundo ele, a exploração de trabalhadores e a desigualdade do poder de negociação entre empregado e empregador oneram a sociedade como um todo. A mudança de posição do Justice Owen Roberts, antes alinhado com a ala conservadora, foi fundamental para a constitucionalidade da lei.
Lochner foi criticado por tendências progressistas, em razão de seu resultado, mas também  por conservadores, não pelo resultado, mas pelo argumento utilizado. A inclusão do direito de liberdade de contratação na cláusula do devido processo legal gerava enorme insegurança jurídica.
Um século adiante, o STF resgata a Era Lochner, para aceitar um direito não previsto de liberdade de contratar em determinadas matérias, indo além para desconsiderar texto constitucional expresso, sob o fundamento de preservar a segurança jurídica. O argumento é contraditório, na medida em que cumprir a Constituição não pode gerar insegurança jurídica. Ao contrário, não existe segurança jurídica a margem da Constituição. A insegurança decorre justamente da ausência da negociação trabalhista, que desempenha papel equivalente ao devido processo legal em outras áreas. A deliberação individual sobre questões essencialmente coletivas dá margem à exploração de trabalhadores, desigualdade de tratamento e a discriminações odiosas.
A Constituição brasileira de 1988 não concretizou várias das transformações previstas. em especial, no âmbito trabalhista. O projeto de democratização do poder nas relações de trabalho alternou ciclos de avanços tímidos com retrocessos. Os direitos sociais não receberam a atenção devida pelo Legislativo e várias previsões não foram regulamentadas. O processo de constitucionalização do Direito do Trabalho estagnou e sua reversão ameaça os direitos sociais dos trabalhadores.
Os sindicatos teriam papel essencial na distribuição de poderes, assegurando voz aos trabalhadores por intermédio da autonomia sindical. Contudo, apesar de a autonomia prevenir a intervenção direta nos sindicatos, o espaço para atuação sindical foi cada vez mais cerceado, mediante atuação persecutória para corrigir desvios, deixando de lado providências para o fortalecimento do movimento sindical.
Ainda assim, o despreparo dos sindicatos, mencionado de forma genérica na decisão do STF, não corresponde à realidade de muitos sindicatos, considerando que convenções e acordos coletivos foram firmados ou revistos após o início da pandemia. O argumento dá munição para posições que desqualificam atores sociais e criminalizam greves e movimentos coletivos, a despeito da garantia constitucional.
A Reforma Trabalhista da Lei 13.467/2017, aprovada às pressas, sem mudanças consideradas necessárias, deixadas para posterior medida provisória (MP 808), que acabou caducando, acelerou a desconstrução da representação coletiva dos trabalhadores. Eliminou a forma de financiamento, sem apresentar qualquer alternativa, nem medidas para uma reestruturação sindical no intuito de assegurar maior representatividade.
A pretexto de modernizar a legislação e valorizar a negociação coletiva, reforçou o poderio dos empregadores, ao ampliar o campo da autonomia individual da vontade, e converteu direitos indisponíveis em transacionáveis. Além disso, restringiu o acesso à justiça. A essas medidas se seguiram campanhas contra o Direito do Trabalho e as instituições trabalhistas, decretando-se o fim do Ministério do Trabalho e desferindo-se ataques ao Ministério Público do Trabalho e à Justiça do Trabalho.
Em razão da pandemia, novas medidas provisórias ignoram o direito fundamental à negociação coletiva. Nada disso seria necessário, porque a Constituição já previa mecanismos para a flexibilização de direitos, por meio da negociação coletiva. O problema é que isso implicaria distribuição de poder.
Daí que as soluções para a crise sejam confiadas ao Estado e a agentes econômicos, numa relação de cumplicidade e de confusão entre público e privado, que relembra o patrimonialismo descrito por Faoro em Os Donos do Poder. É o velho pacto colonial  de concentração de poder, que, na versão revigorada, substitui os trabalhadores enquanto coletividade por indivíduos independentes e autônomos, dispostos a assumir riscos, já que não contarão com um sistema de proteção social.
Na crise de 1929, a maior da história até o momento, a fórmula do novo pacto foi intervenção estatal para prestar assistência aos necessitados e distribuir poder com os empregados, via sindicato. Na atual pandemia, novamente a forte intervenção do Estado foi a opção para socorrer empresários e trabalhadores. Percebeu-se que sem empregos e capacidade de consumo não é possível recuperar o crescimento econômico.
A Organização Internacional do Trabalho tem divulgado estudos para enfrentar a crise, prevendo a necessidade de estímulos dos Estados para aumentar a demanda por empregos decentes, socorrer empresas e empregos, mantendo ingressos e investindo em proteção social, especialmente destinada aos trabalhadores em atividades essenciais. Entre as principais medidas para combater a pandemia, a OIT destaca a ampliação do uso do diálogo social. Não são fórmulas que surgiram na presente crise. Na crise de 2008, o diálogo social e a coparticipação na Alemanha, por exemplo, foram fundamentais para minimizar os seus efeitos e retomar o crescimento.
Comenta-se que esta crise pode ser uma oportunidade para a refundação do papel do Estado, mediante novos pactos voltados para a ampla inclusão social. Para tanto, é necessário abandonar as velhas práticas. O novo pacto exigirá mais Estado, mais democracia, mais diálogo social e uma redistribuição equitativa de recursos e de poder. Tudo o que a Constituição brasileira de 1988 já contempla. Basta cumprir rigorosamente suas disposições.
RICARDO JOSÉ MACEDO DE BRITTO PEREIRA – subprocurador-geral do Trabalho. Pós-Doutor pela Universidade de Cornell –NY - EUA.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Debate virtual "Relações de Trabalho no contexto da pandemia: desafios e alternativas

Reiteramos o convite para o debate "Relações de Trabalho no contexto da pandemia: desafios e alternativas", que acontecerá amanhã, 24/4, às 17h00, entre as Professoras Gabriela Delgado e Renata Dutra e os Professores Ricardo Festi e Sadi Dal Rosso. O acesso pode ser feito por meio do link https://conferenciaweb.rnp.br/webco…/ricardo-colturato-festi 



quarta-feira, 22 de abril de 2020

Notas da REMIR sobre os trabalhadores em plataformas digitais e sobre a decisão do STF na ADI nº 6363

Divulgamos os materiais produzidos pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) acerca do contexto da pandemia do Covid-19 e as relações de trabalho. As notas dizem respeito à necessidade de reconhecimento do vínculo empregatício dos trabalhadores em plataformas digitais e à decisão liminar do STF na ADI nº 6363, em que questionada a constitucionalidade da Medida Provisória nº 936/2020.

Confira a íntegra dos textos em PDF:

terça-feira, 21 de abril de 2020

UnB, 58 anos depois: celebração da reitoria ao aniversário da Universidade de Brasília

De 1962 a 2020, a Universidade de Brasília viveu altos e baixos. Nasceu da euforia pedagógica de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Fez-se parte concreta da nova capital na prancheta primordial de Oscar Niemeyer, adentrando o traçado urbano de Lucio Costa. Estava na cidade recém-criada e vislumbrou um grande futuro a partir de sua colina que mira o Planalto Central.

Em 58 anos, a UnB enfrentou muitos desafios. Primeiro, viu seu ousado projeto educacional ameaçado pela irracionalidade dos que temem a liberdade do conhecimento. O saber foi encurralado ao sabor amargo de um vento antidemocrático. Felizmente, o tempo varreu para os anais da história esse capítulo e permitiu que a Universidade florescesse.

E como se agigantou a UnB nos últimos 35 anos! Reincorporou docentes e técnicos que a haviam deixado em nome da vontade de permanecer sem intervenções e atropelos. Aos poucos, aumentou a sua geografia de lugares, pessoas e números. Chegou com disposição a Planaltina, Ceilândia e Gama. Tornou-se a universidade do Distrito Federal.

Hoje, estamos entre as maiores do país. Atraímos estudantes, docentes e técnicos de todas as regiões para fazer vibrar de diversidade nossos campi. Falamos várias línguas, sotaques, raças, etnias, cores, classes, gêneros. Impulsionamos a economia local, demonstramos nossa posição social estratégica, avançamos cotidianamente rumo à excelência acadêmica.

Neste momento em que o mundo se fecha em casa para enfrentar a pandemia do coronavírus, a Universidade de Brasília exercita movimento duplo. Ao mesmo tempo em que trabalha de forma remota, seus docentes, estudantes e técnicos generosamente se enchem de coragem para ir aos laboratórios fabricar álcool em gel, máscaras protetoras, máquinas de diagnóstico e muito mais.

Sequenciamos o genoma do SARS-CoV2, pesquisamos efeitos de medicamentos, mostramos alternativas para o enfrentamento da doença, colocamos o Hospital Universitário (HUB) à disposição para receber pacientes graves com a Covid-19. Relatadas diariamente à comunidade por meio dos canais institucionais e da mídia, as ações da UnB nos enchem de orgulho e esperança.

Os médicos Juscelino Kubitschek e Ernesto Silva, os engenheiros Bernardo Sayão e Joffre Parada, o poeta Joaquim Cardozo (das palavras e dos cálculos) e o artista plástico Athos Bulcão, entre outros criadores da capital, não estudaram na UnB, é verdade. Mas temos a certeza de que veriam o futuro da Universidade espelhado no passado corajoso e alicerçado em seu presente plural.

A Universidade de Brasília é pública. A Universidade de Brasília, portanto, pertence a todos nós. Hoje é dia de celebrar sua existência amorosa dentro de Brasília, uma das maiores realizações do povo brasileiro. Das janelas temporárias de nossas casas, em paz e com saúde, aplaudimos a cultura e a ciência que convivem em harmonia no coração do Brasil.

Vida linda e longa a Brasília. À UnB, vida linda, longa e com louvor.

Márcia Abrahão Moura
Reitora


Enrique Huelva
Vice-reitor


21.04.2020

Nota da Anamatra sobre o aniversário de Brasília



"Há mais de 200 anos, em 21 de abril de 1792, um dos heróis da luta pela independência do Brasil foi condenado à forca e executado: Joaquim José da Silva Xavier. Ali, nascia o Dia de Tiradentes, em memória a sua atuação pelos valores republicanos. 

Muitos anos mais tarde, em 1960, o Dia de Tiradentes seria a data escolhida para a fundação de Brasília e, junto com ela, os ideais de liberdade de um povo e coragem de uma nação.

Parabéns, Brasília, e que os valores republicanos plantados há tantos anos sejam efetivamente vividos e jamais esquecidos pela história de nosso país".

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Debate Virtual "Relações de Trabalho no contexto da pandemia: desafios e alternativas

Divulgamos debate virtual acerca das relações de trabalho no contexto da pandemia do COVID-19, a ser realizado às 17h do dia 24.04.2020, sexta-feira, com a participação das Profas. Gabriela Neves Delgado e Renata Queiroz Dutra e dos Profs. Sadi Dal Rosso e Ricardo Festi.



Seminário I - Clínica Psicanalítica do Trabalho - Profa. Dra. Ana Magnólia Mendes

O Seminário I da Clínica Psicanalítica do Trabalho, realizado em parceria com a La Pause Escola de Psicanálise e Trabalho, destina-se a profissionais que se interessam pelas questões do trabalho na atualidade e pelas contribuições da Psicanálise para compreensão das psicopatologias e do adoecimento mental. O curso terá 12 horas de carga horária, distribuídas em encontros com duração de 2 horas que acontecerão na última semana de cada mês entre Abril e Setembro, com emissão de certificados. 

Para se inscrever, clique aqui.









segunda-feira, 13 de abril de 2020

Artigo: Dissídio coletivo e a tutela do direito fundamental à saúde e segurança no trabalho

Compartilhamos aqui o artigo do Professor Ricardo José Macedo de Brito Pereira, que foi publicado hoje no Jota - https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/dissidio-coletivo-e-a-tutela-do-direito-fundamental-a-saude-e-seguranca-no-trabalho-13042020

Dissídio coletivo e a tutela do direito fundamental à saúde e segurança no trabalho

A necessária revisão da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho rumo à resolutividade e à efetividade 
Ricardo José Macedo de Britto Pereira


A Presidência do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em suspensões de segurança, cassou liminares deferidas no Tribunal Regional do Trabalho da 2a. Região (TRT2), que estabeleciam a quarentena de empregados da CPTM e do Metrô de São Paulo, enquadrados no grupo de risco da Covid-19, bem como o fornecimento de material de proteção a todos os empregados, para evitar contaminação.
O fundamento da decisões se baseia na inadequação da ação de dissídio coletivo de natureza jurídica para o acolhimento dos pedidos deduzidos pelos sindicatos suscitantes. A jurisprudência do TST é no sentido de que este instrumento não comporta provimento condenatório, pois se restringe a fixar uma interpretação de norma de instrumento coletivo. As decisões questionam ainda a representação de trabalhadores terceirizados pelos sindicatos suscitantes dos dissídios coletivos.
O caso coloca em evidência a interpretação restritiva do dissídio coletivo extraída das disposições da CLT e sua contradição com o sistema de tutela coletiva previsto na Constituição de 1988, cuja funcionalidade resulta de leis anteriores e posteriores à Constituição, destacando-se a Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor.
Nessa linha, TRTs vêm atribuindo alcance mais amplo ao dissídio coletivo, reconhecendo tratar-se de instrumento célere para adoção de providências no âmbito coletivo. Após um período de hesitação, o TST reafirmou a jurisprudência tradicional, mantendo os limites na utilização do dissídio coletivo, entendimento que também aplica às ações anulatórias de cláusulas de instrumentos coletivos de trabalho.
As liminares do TRT da 2a. Região, cassadas no TST, tutelam o direito fundamental de “redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, XXII, CF). O dissídio coletivo foi o instrumento utilizado pelos sindicatos, provavelmente por permitir decisão que alcança todo o grupo e com tramitação mais rápida, uma vez que se origina no próprio tribunal. Em matéria de higiene, saúde e segurança no trabalho, o dissídio coletivo, seja o de natureza econômica ao prever normas e obrigações, seja o de natureza jurídica ao definir interpretações, está voltado para a concretização do mandamento constitucional, no intuito de promover a tutela coletiva dos direitos ali previstos.
A solução da questão sobre ser o dissídio coletivo realmente viável para veicular demandas por medidas preventivas de saúde, higiene e segurança encontra-se no artigo 83 do CDC. Ali, estabelece-se que para a defesa dos interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, “são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela”. Da mesma forma, a legislação processual civil consagra o acesso à justiça como acesso a direitos, por meio do impulso ao exame meritório, de forma célere e com a colaboração de todos os atores (art. 4º e 6º, CPC). Ou seja, o aspecto formal cede à efetividade da tutela dos direitos; a segurança jurídica, por sua vez, só se realiza com a resolução dos problemas levados  ao Judiciário. Portanto, o dissídio coletivo é instrumento hábil para adoção de providências necessárias à tutela coletiva do direito fundamental à saúde, segurança e higiene no trabalho .
Quanto à fundamentação complementar, que questiona a representação sindical, este ponto também exige reflexão. De acordo com o sistema de tutela coletiva, a adequação da representação deve ser aferida considerando a efetividade dos direitos, que estaria comprometida caso, por exemplo, não fosse possível a aplicação isolada da medida preventiva aos trabalhadores representados pelo sindicato. Ou então, tornar-se-ia inoperante, quando observada apenas em relação a uns e não a todos os empregados.
Em suma, as demandas por proteção aos trabalhadores durante a pandemia recomendam a retomada da temática pelo TST para debater a possibilidade de revisão de sua jurisprudência. A solução desses casos depende do reconhecimento aos instrumentos coletivos de alcance capaz de viabilizar a tutela efetiva de direitos coletivos.
O momento atual é extremamente delicado. A pandemia consome vidas e recursos públicos e privados com enorme rapidez. O Brasil se depara com a crise, com deficiências históricas no sistema de proteção social, como um paciente com comorbidade, que sofre de vários males antes do surgimento da doença e necessita lutar muito mais para superá-la. Quando sair, estará debilitado e as sequelas permanecerão por muito tempo.
Haverá muitos desafios e dúvidas, especialmente sobre quando e como  agir para não exagerar na dose e matar o doente. Porém, não se pode admitir o sacrifício da saúde e da vida de alguns trabalhadores, como os que prestam serviços em atividades essenciais, para proteger e assegurar a existência dos demais e da população em geral. Demandas por medidas preventivas para proteger a saúde e a vida dos trabalhadores serão recorrentes nestes tempos de pandemia e as respostas devem ser ágeis e efetivas, independentemente do instrumento utilizado.

sábado, 11 de abril de 2020

Artigo: Emprego, trabalho e renda para garantir o direito à vida

Recomendamos a leitura do material produzido pelo GT Mundos do Trabalho, do CESIT-Unicamp, a respeito das medidas para a garantia da vida durante a pandemia.
A íntegra do artigo pode ser acessada por meio do link: https://www.cesit.net.br/emprego-trabalho-e-renda-para-garantir-o-direito-a-vida/


"GT – Mundos do Trabalho: Reformas, do CESIT
Em tempos de pandemia da Covid-19 e de grandes incertezas quanto às medidas a serem tomadas para que a saúde dos brasileiros e brasileiras e da economia seja assegurada, o “GT – Mundos do Trabalho: Reformas”, do CESIT/IE/Unicamp, com a presente nota, traz elementos que contribuam para desnudar a falsa dicotomia entre preservar a vida via isolamento ou salvar a economia, bem como para a elaboração de políticas públicas que assegurem trabalho, renda e o direito à saúde e à vida. O pressuposto é o de que são ações públicas que pavimentarão os caminhos aptos a definirem tais possibilidades de vida dos cidadãos e da combalida economia brasileira. Esse processo abre entre estudiosos, pesquisadores da área um campo de investigação na perspectiva de compreender as transformações estruturais ou não do lugar do trabalho na organização da vida social.
Vivem-se tempos de profundas instabilidades. A grave crise que abala o planeta evidencia as reais fragilidades dos arranjos mundiais em tempos de capitalismo globalizado e hegemonizado pelos interesses das finanças, trazendo medo e profundas inseguranças. No Brasil, país de características históricas e estruturais marcadas pela pobreza, profunda desigualdade social, precária estruturação do mercado de trabalho e alta concentração de renda, as múltiplas dimensões dessa gritante desigualdade se expressam não só nas abissais disparidades de renda mas, também, na ausência de infraestrutura básica. São 100 milhões de pessoas, por exemplo, que não têm acesso à rede de esgoto, 35 milhões vivem em domicílios sem água tratada e o déficit habitacional é de 7,5 milhões de moradias. Ainda, essa crise evidencia as mazelas de uma sociedade patriarcal, com aumento expressivo da violência doméstica contra as mulheres, justo no momento em que, devido ao isolamento domiciliar, o trabalho reprodutivo e de cuidados se torna ainda mais imprescindível e se converte no centro das rotinas diárias".

Artigo: Covid-19 e o oportunismo desconstituinte

Recomendamos a leitura do texto do Prof. Cristiano Paixão, publicado no Jornal GNN, que replicamos abaixo. A publicação original pode ser consultada no link: https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/covid-19-e-o-oportunismo-desconstituinte-por-cristiano-paixao

Covid-19 e o oportunismo desconstituinte

por Cristiano Paixão

Vivemos uma emergência na saúde pública. Uma pandemia com graves consequências para o presente e o futuro. Qual é o papel da constituição nesse contexto?
Decisões difíceis devem ser tomadas, e muitas vezes é necessário fazê-lo de forma rápida. Isso não significa, porém, que a constituição tenha sua vigência afastada em tempos de crise. É o contrário: exatamente nesses momentos devemos nos lembrar das regras e princípios constitucionais.
Há nessas situações um grande risco para a comunidade política, qual seja, o de permitir que decisões de longo alcance, que possam afetar a própria estrutura da ordem constitucional, sejam adotadas de forma irrefletida, sem debate e ao sabor das maiorias ocasionais. A Constituição brasileira prevê procedimentos excepcionais, como o estado de defesa e o estado de sítio, que permitem, por determinado período, ampliação dos poderes públicos e restrição de algumas liberdades individuais. Observe-se, aliás, que a pandemia do Covid-19 não constitui circunstância apta a ensejar decretação do estado de sítio, conforme acertada e oportuna manifestação do Conselho Federal da OAB. A legislação também prevê o estado de calamidade pública e a declaração de emergência em saúde pública de importância nacional, em que as funções do governo são redimensionadas.
Esses mecanismos, contudo, existem para a defesa da constituição. Eles permitem decisões ágeis, mas impõem prazos para execução das medidas e não desativam os órgãos de controle político e administrativo. E é importante que seja assim, para que se evitem abusos no uso desses instrumentos. Uma crise, por mais grave que seja, não é uma carta branca para alteração permanente da ordem constitucional. Quando essa orientação é esquecida, graves desdobramentos se produzem.
Vejamos o que ocorreu nos Estados Unidos da América no passado recente. Após os atentados de 11 de setembro de 2001, o Congresso, pressionado pelo Executivo, aprovou em poucos dias uma lei antiterror (“Patriot Act”) sem nenhum debate público ou discussão em comissões. Houve aumento de poderes investigatórios das forças policiais e de segurança e diminuição de garantias como privacidade e devido processo legal. Muitos artigos tinham vigência limitada no tempo (“sunset clauses”). Com o aprofundamento da “guerra contra o terror” da era Bush, a vigência dessas normas foi prorrogada. Cerca de 14 mudanças temporárias tornaram-se definitivas, e outras partes do Patriot Act continuam em vigor “temporariamente” até hoje, por meio de novos adiamentos.
Uma situação similar ocorre com uma das maiores violações a direitos humanos da era contemporânea: o campo de prisioneiros de Guantánamo. Criado em 2001 numa base militar norte-americana em território cubano, o campo chegou a comportar mais de 600 prisioneiros em situação ilegal (sem proteção das normas internacionais ou acesso a cortes de justiça nos Estados Unidos). Houve casos de tortura, greves de fome e suicídios de detentos (ao menos três prisioneiros tiraram a própria vida, além de muitas outras tentativas). Hoje existem cerca de 40 prisioneiros em Guantánamo. Não é possível imaginar se e quando serão libertados, pois o Congresso proibiu o fechamento do campo e também vedou a transferência dos detentos para prisões em território norte-americano. Guantánamo recebeu os primeiros prisioneiros em janeiro de 2002. Em abril de 2020, quando estas linhas foram escritas, o campo continuava em funcionamento.
E agora pensemos no caso brasileiro. Tive oportunidade de afirmar, em textos escritos a partir de 2016, que o Brasil vem sendo submetido a uma espécie de “pressão desconstituinte”. Forças políticas e sociais (especialmente ligadas a setores do empresariado) têm defendido (e, em alguns casos, lograram aprovar) medidas contrárias ao arcabouço normativo estabelecido na Constituição de 5 de outubro de 1988. A tramitação e promulgação da EC 95 (referente ao teto de gastos), a aprovação de normas jurídicas que desconstituem o sistema de proteção ao trabalho (Leis nº 13.429 e 13.467, de 2017), a edição de norma administrativa flexibilizando o conceito de trabalho escravo (Portaria 1.129/2017, posteriormente revogada) e a extinção pura e simples do Ministério do Trabalho (no início de 2019) são exemplos de atos legislativos e administrativos que contrariam o disposto na Constituição da República.
É nesse panorama de crise com tendências desconstituintes que o Brasil enfrenta a pandemia do novo coronavírus. Já nos primeiros dias da emergência sanitária foi possível chegar a algumas conclusões: (1) o SUS é essencial ao combate ao Covid-19, especialmente pela sua universalidade e sua natureza pública; (2) os contratos de trabalho precisam ser protegidos por medidas extraordinárias, diante da necessidade de paralisação de grande parte da atividade econômica, em razão das medidas de isolamento social; (3) os trabalhadores chamados “informais” necessitam de igual ou maior proteção social, decorrente da sua própria situação de precariedade decorrente da inexistência de vínculo empregatício.
A expressiva maioria dos países afetados pela pandemia tem procurado reforçar o sistema público de saúde e proteger os trabalhadores em geral. No Brasil, contudo, algo diverso acontece. O governo federal editou a Medida Provisória nº 927, que permitia a suspensão do contrato de trabalho sem remuneração. Após reação negativa da sociedade civil, a medida foi parcialmente revogada. Logo após, outra MP foi editada, a de nº 936, que retomou várias violações existentes na anterior. Uma delas, particularmente grave, afronta a Constituição da República ao permitir um contrato individual de trabalho para reduzir jornada de trabalho e salário (o texto exige a negociação coletiva). Em manifestação recente, o ministro da economia afirmou que a pandemia do Covid-19 seria motivo para aprofundar as mudanças iniciadas com a reforma trabalhista, com a retirada de encargos sobre o contrato de trabalho.
Estamos diante de uma postura oportunista. Setores do governo e do empresariado vislumbram na crise atual uma “janela de oportunidade” para impor, em tempos de emergência, mudanças permanentes nas relações de trabalho. Procuram reescrever a história constitucional, diminuindo ainda mais a função pública do Estado e dos direitos sociais quando uma crise nos mostra a sua importância e centralidade.
Gerações de brasileiros –  trabalhadores, estudantes, médicos, empresários, líderes religiosos, políticos – lutaram, em tempos e modos diversos, para que o Brasil voltasse a ser uma democracia após 21 anos de arbítrio e violência. A Constituição de 1988 abriu uma perspectiva para o futuro. Muito do trabalho de implementação e vigência do texto está por ser feito. Mas deve haver um futuro, e ele não pode ser subtraído da atual geração e nem das próximas, também destinatárias do texto constitucional. Em tempos de crise, que a postura seja de afirmação da Constituição, contra toda e qualquer manifestação de oportunismo desconstituinte.
Cristiano Paixão – Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Artigo: O que vem depois da crise? O Estado Social nos lembra o seu papel

Gabriela Delgado e Renata Dutra publicaram ontem no site "Jota" o artigo "O que vem depois da crise? O Estado Social nos lembra o seu papel". Confira a íntegra abaixo.

A publicação original pode ser consultada no endereço eletrônico a seguir: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-que-vem-depois-da-crise-o-estado-social-nos-lembra-o-seu-papel-08042020 





O que vem depois da crise? O Estado Social nos lembra o seu papel

GABRIELA NEVES DELGADO

RENATA QUEIROZ DUTRA

 

A humanidade enfrentou diversas crises em sua história, associadas às disputas por poder político, por bases político-territoriais, por hegemonia econômica, entre outras causas. As crises tendem a convocar mudanças e ressignificações, situando a impermanência no centro da vida.
É sabido que os processos de crise do capitalismo no século XX provocaram uma reconfiguração paradigmática do Estado e de seu papel garantidor de direitos fundamentais, mediante a articulação do conceito de Estado Social de Direito. Assim ocorreu com a crise de 1929, nos EUA, em que o desastre financeiro dali resultante foi decisivo para o favorecimento de políticas sociais e de reformas econômicas estruturadas na intervenção do Estado na economia. Em dado contexto, foi formatada uma das políticas de intervenção social mais expressivas do período, o New Deal, desenvolvido a partir do referencial teórico de John Maynard Keynes – o denominado Keynesianismo.
Na mesma linha, em meados do século XX, os impactos causados pela segunda grande guerra também reorientaram a política estatal em torno da construção de um projeto de Estado de Bem-Estar Social, capilarizado em quase todos os países do ocidente europeu, à exceção de Espanha e Portugal, que somente ingressaram na fase democrática tempos depois, já na década de 1970, com o término de seus respectivos regimes fascistas.
Esse projeto de Estado Social de Direito basicamente se legitimou como o modelo de Estado predominante na Europa ocidental entre os anos de 1945 até aproximadamente o final da década de 1970, momento em que foi entrecortado pela difusão da política neoliberal com suas referências de restrição aos direitos sociais, de integração de mercados financeiros e de consumo desenfreado, até hoje prevalecentes.
Tudo indicava que o neoliberalismo permaneceria intacto num futuro próximo. Mas a crise do coronavírus rapidamente expôs as fragilidades e injustiças desse modelo, abrindo caminho para novas configurações.
Mais uma vez, a circunstância de crise nos ensina. E, nesse momento, ensina justamente a desaprender aquilo que a racionalidade neoliberal nos vinha fazendo naturalizar: as regras de mercado não podem resolver tudo e, se não forem limitadas e controladas pelos mecanismos de regulação estatal, como ensinou Karl Polanyi1, podem conduzir à degradação humana e ao colapso social.
Pierre Dardot e Christian Laval, quando apostam na conceituação do neoliberalismo como uma racionalidade que contamina os mais diversos aspectos das relações sociais e da vida humana, acertam ao perceber que há, sob a hegemonia neoliberal, não apenas um questionamento do papel do Estado, mas também do funcionamento de toda a esfera pública, do trabalho e das relações sociais construídas nos planos individual e coletivo2.
O neoliberalismo traz o esvaziamento do conteúdo político da esfera pública e de decisões pautadas em valores de humanidade, para que, de forma unilateral e autoritária, todas as decisões sejam regidas por um único vetor ideológico: os interesses abstratos do mercado e sua indiferença às formas de desigualdade e de vulnerabilidade presentes na sociedade.
Trata, também, do esvaziamento da regulação do trabalho e da tela pública de proteção social, sobretudo em tempos de intensificada tecnologia digital, em que o trabalhador é equivocadamente compreendido como “homem-empresa”, convocado a garantir os resultados dos seus investimentos, administrar os prejuízos e lucros, assumir riscos e oportunidades, numa linguagem que se distancia intencionalmente dos parâmetros das relações sociais concretas e das referências constitucionalizadas de cidadania plena e de proteção ao trabalho em condições de dignidade.
O neoliberalismo, assim, se perfaz como ideário que exacerba o individualismo, desfazendo, lentamente, os laços de solidariedade capazes de assegurar coesão ao tecido social em sua teia de relações construídas por heterogêneas realidades.
Foi esse o discurso que decretou a desconstrução do Estado Social, instituindo reformas desarticuladoras de seus mais importantes instrumentos jurídico-institucionais, caracterizadas por uma desatenção às questões sociais. Os exemplos são variados e presentes em escala global, destacando-se, no caso brasileiro, o inusitado engessamento, por emenda constitucional, por 20 anos, dos gastos do Estado, seguido das precarizantes reformas trabalhista e da previdência social, além de diversos outros diplomas normativos, também de caráter flexibilizatório, que as sucederam.
Desde meados da década de 1970 até a atualidade, a política neoliberal atingiu não só países desenvolvidos, mas principalmente países emergentes ou periféricos, que mantêm suas economias dependentes e posicionadas a reboque das grandes economias do globo. Nos países periféricos, a política neoliberal teve maior penetração, apresentando-se mais agressiva, porque, neles, a construção de uma práxis de cidadania democrática e de democracia política era em sua maior parte incipiente, com projetos ainda não inteiramente consolidados de promoção de direitos humanos, de desenvolvimento social e de proteção ambiental e cultural.
O neoliberalismo se afirmava como projeto inexorável e perene até que sucedeu a pandemia e, com ela, a crise.
O que se assistiu, então, foi um processo de estupefação coletiva diante da percepção da intensa dependência da sociedade em relação a uma estrutura estatal tão frágil. Diante do coronavírus, as leis de mercado, por não compartilharem projetos comuns de humanidade, tentaram fazer crer que o cuidado e a proteção são estritamente individuais: cada um que cuide de si e dos seus, na estrutura de sua vida privada. Como se o sentido de preservação e a sensação de paz estivessem apenas dentro de nossas casas (ou dentro de nós mesmos), numa perspectiva estritamente individualista. Esta seria a saída considerada possível. Aliás, a lógica individualista neoliberal corrobora esse pensamento ao se afigurar como treino para que o ser humano não desenvolva seu papel e consciência sociais, para que o outro continue sendo um estranho invisibilizado, preservada a distância de segurança.
Contraditoriamente, o isolamento social é a solução científica apontada para a contenção do vírus, como orienta a Organização Mundial de Saúde – OMS, mas só pode funcionar se essa for uma estratégia encampada de modo coletivo e igualmente por sujeitos em diferentes situações de risco. Esse caminho, ademais, se apresenta como de difícil operacionalização para pessoas inseridas em relações de trabalho precárias, informais e vulneráveis, que vivem em péssimas condições de moradia e desprovidos de saneamento básico e para quem o isolamento social não se afigura como alternativa, diante da demanda por garantia de subsistência.
É exatamente nessa circunstância de crise, impermanência, assombros e perdas que o Estado Social é convocado a atuar para redefinir os rumos da sociedade, rompendo fronteiras econômicas e sociais até então cristalizadas. Nenhum de nós quer perder os pais, os avós, a respiração ou o salário no fim do mês. E, nesse momento, não há como resolver questões tão intrincadas como essas sem a atuação do Estado. A ação é necessária e também se torna prenúncio de um tempo de virada.
Para fazer frente à grave crise provocada pelo coronavírus, alguns países estruturaram importantes políticas estatais intervencionistas, de variados matizes, dinâmicas complexas e múltiplas variáveis, numa lógica de atuação comunitária e focada na preservação da vida humana. O repertório internacional de medidas de enfrentamento da pandemia é, além de largo, contrário a tudo o que vinha pregando o receituário neoliberal. Agora, acertadamente, se fala em renda mínima para os mais vulneráveis e para os não alcançados pelo Direito do Trabalho; proteção trabalhista para que os empregados não se contaminem, não percam seus empregos e tenham assegurada sua inserção social e previdenciária durante a crise sanitária; saúde pública e universal para que todas e todos – independente de classe social, raça, ou gênero – possam ser prevenidos e cuidados em face da pandemia; gestão pública concertada e capaz de viabilizar, com oferta dos serviços essenciais, o respeito às prescrições de saúde coletiva, como o isolamento; investimento público para manter o funcionamento da economia durante o momento de retração da demanda e, sobretudo, na retomada das atividades, após vencida a crise sanitária.
Esse bem traçado projeto passa pelo pressuposto ético mais repetido no noticiário internacional: primeiro a vida, depois a economia. E o projeto de Estado de Bem-Estar Social, aperfeiçoado pelo modelo de Estado Democrático de Direito, se coloca como o caminho necessário justamente por pressupor que o funcionamento da economia decorre e serve à preservação e à valorização da vida humana, e não o contrário.
Com estrutura pública de suporte aos complexos arranjos sociais diante da crise viral que nos assola, o Estado Social ainda pode operar como vetor para que a renda, o consumo e a proteção social reverberem em crescimento econômico, até que finalmente chegue a bonança.
Assim, a capacidade de reinventar o presente e o futuro, como tempo propício à revitalização dos projetos de vida, à construção de relações sociais menos desiguais e ao cumprimento de expectativas civilizatórias, nos fortalece enquanto todo social unido por vínculos de solidariedade, num conjunto no qual o Estado Social tem um papel que, mais uma vez na história da humanidade, se mostra imprescindível.
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1 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
2 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.