terça-feira, 22 de novembro de 2016

7ª Edição do Prêmio ANAMATRA de Direitos Humanos


A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) entrega, nesta quinta-feira (24/11), o Prêmio Anamatra de Direitos Humanos. A cerimônia acontece a partir das 19 horas, no Museu de Arte do Rio (MAR), na Praça Mauá, Centro, no Rio de Janeiro (RJ). 
Já em sua 7ª Edição, o Prêmio tem como objetivo valorizar ações desenvolvidas no Brasil por pessoas físicas e jurídicas que estejam comprometidas e que promovam, efetivamente, a defesa dos direitos humanos no mundo do trabalho.
Foram selecionados, entre os inscritos, projetos nas categorias "Cidadã", "Programa Trabalho, Justiça e Cidadania (TJC)" e "Imprensa".

Neste ano, o Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania" (UnB/CNPq) concorreu com o projeto "Combate à Terceirização: da Educação Universitária à Mobilização Coletiva de 2016", se classificando entre os três finalistas da categoria "Cidadã".



Confira abaixo os vencedores de cada categoria e as respectivas menções honrosas.

CATEGORIA CIDADÃ

Título do trabalho: Eugênia, a Engenheira
Participante: Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros
Cidade: Rio de Janeiro/RJ
Resumo: Projeto usa histórias em quadrinhos para debater direitos e deveres dos trabalhadores. Com ilustrações de Pater e periodicidade mensal, os quadrinhos retratam temas sobre direitos trabalhistas e sociais, como privatizações, terceirizações, racismo, transfobia, violência, entre outros. A primeira história em quadrinhos relatou uma situação de assédio moral no trabalho, que atinge diretamente as mulheres. A personagem Eugenia é uma mulher negra, engenheira de 40 anos com 15 de trabalho em uma empresa pública, recém-divorciada e tem dois filhos: uma pré-adolescente e um menino de 9 anos. 

CATEGORIA IMPRENSA

Subcategoria Impresso (Jornal, Revista ou Internet)

Título do trabalho: Escravos da moda
Veículo: Revista Galileu – Editora Globo
Participante: Thiago Tanji
Cidade: São Paulo/SP
Resumo: Com 80 bilhões de peças de roupa vendidas por ano, a indústria da moda mantém uma fórmula que combina o consumo desenfreado com a exploração da mão de obra.  Reportagem mostra a realidade escondida pode detrás da produção de grandes grifes brasileiras e estrangeiras: jornadas de trabalho extenuantes, baixos salários, excessiva cobrança por metas e até mesmo flagrantes de trabalho forçado e infantil.

Subcategoria Televisão

Título do trabalho: As eternas escravas
Veículo: TV Record
Participante: Gustavo Costa – produção e reportagem/editor executivo, Lúcio Sturm – repórter, Marcelo Magalhães – editor, Domingos Meirelles - apresentador, Michel Mendes – repórter cinematográfico, Valmir Leite – auxiliar técnico, Caio Laronga – editor de pós-produção, Natália Florentino – finalização, Rafael Ramos – sonorização, Renato Battaglia – arte e Rafael Gomide – chefe de redação. 
Cidade: São Paulo (SP)
Resumo: Reportagem mostra um escândalo no estado de Goiás que revela uma das faces mais cruéis da humanidade: a escravidão de crianças negras e pobres. Repórteres levantaram documentos e investigaram crimes bárbaros: meninas são amarradas, torturadas e transformadas em servas domésticas e sexuais. Por uma ironia do destino, as vítimas são justamente descendentes de escravos. As meninas, entre 9 e 14 anos de idade, vivem no quilombo Kalunga, região próxima à Brasília. Denúncias incluem “leilões” de menores virgens por 100 reais e os acusados são políticos e pessoas ricas de Cavalcante, uma cidade vizinha ao quilombo Kalunga.

Subcategoria Rádio

Título do trabalho: Marcada para lutar
Veículo: Rádio CBN          
Participante: Hebert Lenin de Araújo Pereira
Cidade: João Pessoa (PB)
Resumo: Retrata o surgimento das ligas camponesas na região Nordeste na década de 60, durante as turbulências políticas e sociais. As organizações lutavam pelos direitos dos trabalhadores rurais.

Subcategoria Fotografia

Título do trabalho: Série Rio Negro: piaçabeiros reféns do isolamento e da escravidão
Veículo: Jornal Amazonas em Tempo
Participante: Sergio Ricardo de Oliveira
Cidade: Manaus/AM
Resumo:  Fotografia ilustrou matéria do jornal Amazonas em Tempo sobre a vida de homens e mulheres que trabalham com o extrativismo de fibras de piaçava no norte do Estado do Amazonas, refém do isolamento, das condições degradantes de trabalho e até mesmo do trabalho forçado. 

CATEGORIA PROGRAMA TJC

Título do trabalho: Graffiti na Escola
Participante: EMEFEJA Pierre Bonhomme
Cidade:  Campinas (SP)
Resumo:  Incluir, através da arte, os temas do Programa Trabalho, Justiça e Cidadania, no ensino de jovens e adultos. Esse é o objetivo do projeto Graffiti na Escola. O trabalho foi idealizado pela equipe pedagógica da escola Pierre Bonhomme, em Campinas, sob a coordenação da Amatra 15. A iniciativa contou com a participação do grafiteiro Gustavo Bordin, que ministrou oficinas de arte para os alunos. O trabalho voluntário do grafiteiro é reconhecido no Brasil e no exterior, em especial no resgate de jovens em situação de risco que cumprem medidas socioeducativas.
MENÇÕES HONROSAS  DE 2016

Reportagem - A rota da castanha: exploração sem limite
Categoria: Imprensa/Subcategoria TV
Resumo:  Reportagem especial do Câmera Record, sob o comando do repórter Daniel Motta e equipe, denunciou as condições desumanas de trabalho a que são submetidos homens, mulheres e crianças que sobrevivem da quebra da castanha no agreste brasileiro. Os repórteres revelaram também como várias gerações de trabalhadores rurais são explorados na produção desse produto nobre e caro, que está presente à mesa dos brasileiros.

Série “À margem”
Categoria: Imprensa/Subcategoria Rádio
Resumo: A série da jornalista Mislene Santos, do Jornal Correio da Paraíba (Rádio 98 FM), relatou a realidade do mercado de trabalho para travestis e transexuais. A narrativa mostra problemas como prostituição e informalidade, mas também fala de políticas públicas relativas ao tema e de exemplos de superação por meio do estudo e trabalho.

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Fonte: ANAMATRA [1][2]

domingo, 20 de novembro de 2016

"Ser humano está à frente do poder econômico", diz ministro do TST

Jurista lamenta retorno de ideias "enterradas no passado" e vê ameaça à Constituição e ao Estado de Direito

Por Vitor Nuzzi
Da Rede Brasil Atual


A terceirização irrestrita e a prevalência do negociado sobre o legislado, duas das principais propostas de flexibilização das leis trabalhistas em discussão no país, pertencem ao passado, contrariam a Constituição e o próprio Estado democrático de direito, na visão do jurista Mauricio Godinho Delgado, ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Também embutem sofismas e perversidade, disse o magistrado, ao abrir, nesta quinta-feira (17), em São Paulo, um encontro nacional de advogados trabalhistas.

"Se o objetivo das reformas é buscar a segurança jurídica, basta cumprir a orientação jurisprudencial, que fixa balizas muito claras", declarou Godinho, pouco antes de iniciar a sua palestra, durante a qual representantes da magistratura e da advocacia fizeram críticas ao que chamam de tentativas de "desmonte" do Judiciário.

No tribunal desde 2007, Godinho é um dos 18 ministros do TST, de um total de 27, que assinaram ofício encaminhado no final de outubro à presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, com críticas ao ministro Gilmar Mendes, que recentemente fez ataques ao Judiciário trabalhista, falando em favorecimento ao trabalhador e prejuízo às empresas. Durante sua palestra no evento – promovido pela Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (Abrat) e pela Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) –, o magistrado não fará referência ao episódio, mas defenderá a Constituição brasileira, por seus princípios "humanísticos e sociais" próprios do Estado democrático de direito, pondo "a pessoa humana à frente do poder econômico, no vértice, no ponto mais importante da ordem jurídica".

Em relação à tese do negociado sobre o legislado, o ministro do TST disse que à negociação coletiva cabe aperfeiçoar as condições e as relações do trabalho, "não tendo o propósito histórico e constitucional" de piorá-las. E contestou quem fala em "engessamento" da lei como fator prejudicial à economia.

"Não tem sentido transformar o sindicalismo em instrumento de precarização trabalhista. A legislação tem o papel de incrementar a força do mercado interno, estimulando a atividade empresarial pelo aumento do número de consumidores, o que demonstra que ela não impede o desenvolvimento da economia brasileira. Esse argumento não é comprovado pelos fatos. Se o indivíduo não tiver um nível adequado de proteção trabalhista, ele não se realiza como pessoa e ao mesmo tempo não integra o mercado consumidor, não favorecendo a própria economia", afirmou Godinho.

Sobre a terceirização, o ministro do TST defendeu limites à prática, para evitar uma precarização "inapelável" da força de trabalho. Uma terceirização irrestrita, acrescentou, eliminaria inclusive as categorias profissionais, em desrespeito à Constituição de 1988. "Além disso, a OIT (Organização Internacional do Trabalho), em sua Constituição, de 1944, proíbe que o trabalhador seja transformado em mercadoria, enquanto que a Constituição da República afirma o princípio da centralidade da pessoa humana na ordem jurídica", argumentou. "Dessa maneira, a terceirização generalizada inverte gravemente a estrutura e a principiologia constitucionais."

Neste momento, ele vê a Carta de 1988 "fortemente ameaçada", lamentando a ausência de um "debate democrático" na mídia, que segundo o magistrado se apresenta de forma uníssona, atuando em uma mesma direção – contra os direitos sociais. "Os astros se reuniram de uma maneira um pouco perversa contra a justiça social", comentou no início de seu pronunciamento a uma plateia de aproximadamente 100 pessoas, na sede da Associação dos Advogados, na região central de São Paulo.

Capitalismo

Entre os princípios contidos na Constituição, está a valorização do trabalho e da livre iniciativa, da qual se falava, pontualmente, desde a Constituinte de 1823. A atual Carta também trata do tema, diz Godinho, "mas é um capitalismo gerado sob os moldes de um Estado democrático de direito". Assim, conclui, todos os institutos do Direito do Trabalho estão submetidos a essa estrutura. Mas ele lamenta dizendo que "hoje se retomaram temas do passado, como se estivéssemos sob o império da Constituição de 1891, da livre iniciativa sem freios".

Para o ministro, caberá ao capitalismo superar fórmulas de gestão que suponham "mercantilização da pessoa humana" ou uma "gradativa degradação". "Não há argumento econômico que justifique tamanho vilipêndio da pessoa humana. Isso é produto apenas da ganância levada à teorização jurídica", critica.

Ainda sobre o negociado em relação ao legislado, o magistrado diz se tratar de outro tema "que não tem nenhum respaldo constitucional, sociológico, histórico". Ele cita novamente a Constituição, instrumento que teria permitido avanços no processo de negociação coletiva. Até então, acrescenta, o poder normativo desestimulava as negociações, transferindo a responsabilidade para o Judiciário.

"Retomar esse tema hoje, de maneira totalmente subvertida, realmente é de um sofisma que faria invejar os sofistas gregos. É um remédio para piorar as condições de vida dos trabalhadores. A tese é de uma perversidade implacável. O conceito de Estado democrático de direito traz uma mensagem muito clara: não existe sentido em adotar uma tese de desmontar a caracterização da negociação coletiva."

Godinho também rebate o argumento de que a medida se justificaria em um contexto de déficit fiscal do Estado, prevendo um cenário ainda pior nessas condições. As futuras negociações – "inúmeras, milhares, reiteradas" – vão "esterilizar" a natureza salarial das verbas trabalhistas, diz o juiz. Além da perda para os trabalhadores, também haverá prejuízo ao Estado, com menos arrecadação. "As contribuições previdenciárias vão ser feridas de morte." Assim, a possível mudança não prejudicaria apenas o pobre, tese aceitável para quem tem mentalidade do século 19 ou 20, afirma o ministro do TST, mas causará um "rombo fiscal terrível".

"Essas teses não foram enterradas no passado por razões extrajurídicas", finalizou o magistrado. "Foram suplantadas porque são equivocadas."

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quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Artigo: "De novo a Belíndia"

O governo Michel Temer avança celeremente para o abismo social. Talvez tenha ficado impactado, em sua recente viagem à Índia, ao constatar que aquele espetacular país tem um bolsão monumental (dezenas, talvez centenas de milhões) de excluídos do mercado de trabalho.

Lembro-me que em outubro de 2014, quando visitei a Índia para fazer conferência em Nova Déli, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, acabava de lançar um "novo" slogan. Dizia que, assim como a China celebrizou-se pelo made in China, a Índia deveria consagrar-se pelo make in Índia. No país das castas e classes, riquezas e vilipêndios, a superexploração do trabalho poderia ser ainda mais intensa que a chinesa.

Temer não pôde ver com os próprios olhos, poucas semanas antes de sua viagem, a greve que foi considerada a maior do país, com mais de 180 milhões de participantes.

No Brasil, o ministro do Trabalho, anteriormente, sugeriu que deveríamos aumentar a jornada de trabalho para 12 horas diárias.

O desemprego, por aqui, não para de crescer -são quase 12 milhões de pessoas e outras tantas entre o subemprego e o desalento.

O eixo central das ações de Temer nas relações de trabalho é implantar a flexibilização completa dos direitos. O sentido essencial do PLC 30/2015 é avançar na terceirização total, por meio da eliminação da disjuntiva entre atividade-meio e atividade-fim. O governo age alegando que está, na verdade, regulamentando o trabalho terceirizado.

Todos sabem o real significado desse ato -a deterioração ainda maior das relações de trabalho, uma vez que os terceirizados receberão menos, trabalharão mais e terão ainda maior subtração de direitos.

Enquanto isso, as empresas contratadas que fornecem os terceirizados poderão continuar fugindo das penalidades por meio de burlas que frequentemente praticam e pelas quais raramente são condenadas.

Vou dar um exemplo emblemático que parece excitar o empresariado, global e tropical. Trata-se do "zero hour contract" (contrato de zero hora), modalidade perversa de trabalho que viceja no Reino Unido e em outros cantos, onde os contratos não têm determinação de horas.

Trabalhadores das mais diversas atividades ficam à disposição e, quando recebem uma solicitação, ganham estritamente pelo que fizeram. Nada recebem pelo tempo que ficam à espera da nova dádiva.
E os capitais informáticos, numa engenhosa forma de escravidão digital, cada vez mais se utilizam dessa pragmática de flexibilização total.

Assim, de um lado deve existir a disponibilidade perpétua para o labor, facilitada pela expansão do trabalho on-line. De outro, propaga-se a precariedade total, que destrói ainda mais os direitos vigentes.

É por isso que, neste mundo do trabalho digital e flexível, o dicionário empresarial não para de "inovar". "Pejotização" em todas as profissões -médicos, advogados, professores, bancários, eletricistas, cuidadoras. "Frila fixos" espalhados nas Redações dos jornais, com "metas" impostas que geram assédios, adoecimentos e depressões.

Isso sem falar nos pilotos da aviação global que já são contratados nos países em que a legislação está em processo de desmonte.

E "trabalho voluntário" em ritmo compulsório na Olimpíada, que enriquece ainda mais as corporações do entretenimento.

Em breve teremos um Brasil com riqueza exuberante no topo, parecido com a Bélgica, e uma miserabilidade social que segue os padrões da Índia. Seremos novamente a Belíndia.

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RICARDO ANTUNES é professor titular de sociologia do trabalho na Unicamp. Escreveu, entre outros, o livro "Os Sentidos do Trabalho" (ed. Boitempo)

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Artigo: O STF e o direito do trabalho do inimigo

A década de 1990 trouxe uma onda conservadora ao direito penal. Isso começou com as políticas de “tolerância zero” do ex-prefeito de Nova Iorque Rudolph Giuliani, que se constituíam em mal disfarçadas medidas de combate aos pobres e sem-teto. A Alemanha não poderia ficar atrás no arsenal de medidas inovadoras no campo do retrocesso penal. Foi quando Gunther Jakobs, professor e jurista, concebeu a teoria do direito penal do inimigo. Segundo essa teoria, certos indivíduos representariam um perigo à própria sobrevivência da sociedade, razão pela qual não mereceriam o mesmo tratamento reservado a cidadãos que transgredissem normas penais. Por representarem ameaça à sociedade como corpo social, esses indivíduos não seriam beneficiários das garantias constitucionais e processuais aplicáveis a réus e acusados em geral. Sobre eles deveria recair uma lógica de prevenção, de antecipação das forças da ordem em relação a uma possível prática de crimes.
Em 2016, uma onda conservadora atingiu o direito do trabalho no Brasil. O órgão responsável por essa desconstrução das regras e princípios que regem o mundo do trabalho é o Supremo Tribunal Federal. Em duas decisões recentes, o Supremo inovou. Ele criou a figura do direito do trabalho do inimigo.
Ao julgar dois processos que envolviam o direito de greve de empregados e servidores públicos, o Tribunal acabou por impedir, em termos práticos, o exercício desse direito. Analisemos as duas decisões.
A primeira delas é a decisão monocrática proferida na Reclamação nº 24.597/SP. O caso envolvia greve deflagrada pelos empregados públicos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Diante da paralisação, o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região já havia determinado a manutenção de 70% dos trabalhadores e prestadores dos serviços de todos os setores do Hospital, sob pena de multa diária. Com a Reclamação proposta pelo Hospital, o STF estendeu a todos os empregados a determinação de continuidade dos serviços, mantida a penalidade. Na prática, houve a proibição de exercício do direito de greve.
É importante observar as referências feitas na decisão. Uma delas, e talvez a mais importante, é à decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal na Reclamação nº 6.568/SP (DJe de 25.9.2009). Naquela ocasião, submeteu-se ao STF a decisão sobre a competência para julgar os conflitos decorrentes de greve deflagrada por policiais civis do estado de São Paulo. Em uma argumentação lateral, alheia à controvérsia, o Ministro Relator, Eros Grau, fazendo referência a São Tomás de Aquino, expressou o entendimento de que “(…) tal qual é lícito matar a outrem em vista do bem comum, não será ilícita a recusa do direito de greve a tais e quais servidores públicos em benefício do bem comum”. Em outra passagem, observou, então, que “a conservação do bem comum exige que certas categorias de servidores públicos sejam privadas do exercício do direito de greve. Defesa dessa conservação e efetiva proteção de outros direitos igualmente salvaguardados pela Constituição do Brasil”.
A segunda decisão, proferida pelo Plenário do STF, por maioria de seis votos contra quatro, deliberou sobre a questão do corte do ponto dos servidores públicos em greve (RE 693.456-RJ). De forma expressa, o Supremo Tribunal decidiu que o administrador público não só pode, mas tem o dever de cortar o ponto de servidores grevistas. O resultado do julgamento, em processo com repercussão geral, foi o de que a regra será o corte do ponto (e consequente suspensão do pagamento dos vencimentos) assim que a greve se iniciar.
O que há em comum nas duas decisões, além da completa incompreensão do significado do conceito de greve?
O fato de que, preventivamente, são adotadas medidas para inviabilizar o exercício do direito de greve. Por um lado, permitindo-se que determinadas categorias de servidores sejam privados, por princípio, da possibilidade de entrar em greve. Por outro, ao impor um desconto na remuneração que incidirá assim que o movimento paredista for desencadeado.
É rigorosamente a mesma lógica utilizada na teoria do direito penal do inimigo. Para evitar que o “mal” (a greve no setor público, na visão do STF) se concretize, adotam-se medidas que combatam, “na raiz”, qualquer movimento de paralisação, inviabilizando, em termos práticos, o exercício do direito.
Chama a atenção a radicalidade dos julgamentos do STF nesta matéria. Como se sabe – e já enunciado em recente artigo publicado no Jota –, a Constituição de 1988 foi bastante clara e precisa quanto à amplitude do exercício do direito de greve, consignando, em seu art. 9º, ser assegurado “o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. No art. 37, inciso VII, por sua vez, o direito é estendido aos servidores públicos sem restrição prévia do campo normativo, sendo prevista apenas a edição de lei específica para fixar termos e limites do exercício do direito. Não há espaço interpretativo para a proibição desse direito.
As decisões do STF privilegiam, contudo, o poder repressivo da Administração Pública, quer pela exclusão de determinadas categorias do direito de greve, quer pela imposição (ou “dever”) do corte do ponto assim que o movimento for desencadeado. O que justifica essa leitura, após 28 anos de vigência de uma Constituição democrática? Como defender esse tipo de interpretação restritiva a partir de uma Constituição que foi produto de uma mobilização social que foi marcada, historicamente, pela realização de greves que visavam melhorias de condições de trabalho e, ao mesmo tempo, a redemocratização do país?
Apenas o STF poderá conceder essas explicações, em futuros casos e na publicação dos acórdãos dessas decisões até aqui adotadas. Algo, contudo, já está claro. O trabalhador do setor público que procurar, por meio da ação coletiva da greve, apresentar demandas e lutar por seus direitos, passará a ser visto como inimigo do Estado e da sociedade. A repressão do poder público poderá ser ativada de imediato. Quando isso ocorreu ao longo da história do Brasil – em várias oportunidades –, o Poder Judiciário era o único recurso disponível aos trabalhadores. Em algumas circunstâncias, juízes e tribunais decidiram, de modo corajoso, proteger o exercício desse direito, mesmo em tempos ditatoriais.
À época do regime militar, o governo, junto ao Congresso Nacional, cuidou de editar normas que inviabilizavam, na prática, o exercício do direito de greve. A Carta de 1967 e a EC nº 1/1969 proibiam a greve aos servidores públicos e nas atividades consideradas essenciais. No período democrático atual, o papel de estabelecer restrições ao direito de greve foi assumido pelo Supremo Tribunal Federal.
De modo tremendamente irônico, portanto, a lógica se inverteu. Na democracia, com uma Constituição que assegurou o direito de greve, a repressão não será apenas tolerada pelo Poder Judiciário. Ela acaba de ser ordenada a todo administrador público que se deparar com a deflagração de uma greve. E tudo isso por força de duas decisões do Supremo Tribunal Federal, órgão encarregado de zelar pela guarda da Constituição.
Muitos trabalhadores desafiaram as limitações estabelecidas pela ditadura militar ao direito de greve. Especialmente a partir de 1976, passaram a reescrever a história do movimento sindical desafiando abertamente os órgãos de repressão ou simplesmente ignorando as práticas de proibição e restrição ao exercício do direito. Com isso, foram protagonistas da resistência ao arbítrio e da redemocratização.
Qual será atitude dos trabalhadores no atual momento, em que a repressão tem origem numa decisão plenária do órgão de cúpula do Judiciário? Conseguirão resistir? De que forma?
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Por Cristiano Paixão
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Procurador Regional do Trabalho em Brasília. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UFSC). Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágios pós-doutorais em História Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa e em Teoria da História na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB (2012-2015).

Por Ricardo Lourenço Filho
Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região; Doutor e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB; Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP; Integrante dos grupos de pesquisa “Trabalho, Constituição e Cidadania” e “Percursos, Narrativas e Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (CNPq/UnB).