Nesse dia do trabalho de 2021 não me sinto nem um pouco privilegiada de ser participante da histórica e incontornável tragédia do capitalismo numérico! Uma era onde a radicalidade dos paradoxos do capital avançam de modo incomensurável. A sua coabitação com o capitalismo financeiro neoliberal tem produzido efeitos nefastos para a classe que vive do trabalho e para os laços sociais. Tragédia pré-anunciada há quase uma década pelos estudiosos do campo das psicopatologias clínicas do trabalho. Em 1994, as patologias estudadas eram a sobrecarga, a violência moral e a solidão. Nos anos 2000 surge o suicídio no trabalho, e atualmente convivemos com a patologia da indiferença, a fobia e a melancolia, que tem se desdobrado na depressão como uma doença do século. Depressão que não está dissociada das exigências de produção, que com seus imperativos nos fazem acreditar que somos como as máquinas ou como os deuses totêmicos, sem carne e sem osso.


São para os que, contrariamente, são de “carne e osso” que quero dedicar este texto. Para aqueles das motos que fazem as entregas das deliciosas gourmandises, que se arriscam na velocidade de um aplicativo que prescreve uma falaciosa capacidade humana de auto-superação; para os catadores que lutam para não serem expulsos das suas ocupações; para os que lutam para manter sua humanidade; e para todos os outros que não sucumbem aos imperativos da performance, da excelência e do produtivismo. Para aqueles que trabalham! Que buscam a centralidade ontológica para o seu trabalho e o trabalho dos outros. Uma alternativa ao modo de produção capitalista, encarnado nos modelos de organização e gestão do trabalho ainda regidos pelos mesmos princípios da racionalidade do taylorismo. Para aqueles que resistem. E resistir é trabalhar nas saídas do labirinto que os paradoxos do capital  produz.


De modo particular, quero homenagear, nesse dia do trabalho, os trabalhadores que adoecem por romperem com esta normatividade, os que têm a coragem de buscar tratamento e de falar das suas angústias e para aqueles que fazem o trabalho da escuta: os estagiários do  projeto da clínica psicanalítica com trabalhadores em adoecimento desenvolvido no PPPG-PSTO no nosso Laboratório.


Trabalho da escuta que é trabalho vivo! O discurso capitalista como estudado por Lacan no Seminário 17 o avesso da psicanálise vende, por meio da “ideologia da felicidade” – que  protege a nossa ferida narcísica -, um trabalho morto. Através da escuta clínica é possível a descolonização do sujeito adoecido, que pelo seu adoecimento denuncia a falha da organização do trabalho e por isso é tão excluído e discriminado. Relança o sujeito no circuito do trabalhar que se contrapõe à centralidade do trabalho no modo de produção capitalista, antes apenas assalariado e hoje auto-empreendido.


O trabalho vivo não existe quando o saber absoluto é o imperativo. O saber criativo não coaduna com o saber absoluto. A lógica do saber absoluto é uma ameaça a que o trabalhador seja transformado em apenas uma unidade de valor. Não existe o certo ou o errado no trabalhar, existe um sujeito que faz. É um duro percurso se manter no trabalho vivo, escapando das armadilhas do controle, servilismo, mudez e indiferença. É uma contra-mão que convida a criar, subverter, transgredir, pensar e agir. E  para isso é essencial a confiança, a parceria, a compaixão, o espaço de fala e a ação política a ser construída.


O trabalho vivo implica sair do lugar, movimentar-se, falar para reconstruir a narrativa histórica do trabalho seu e do outro e, assim, (com)viver e se (re)conhecer como classe trabalhadora. Retomar o político, como disse Marx, que articula a ética do desejo com a ética do viver junto, que de certo modo pode se desdobrar na insistência de existir, uma luta constante na irreparável contradição do capitalismo. Contra um silenciamento coletivo vindo da voz tirânica do discurso capitalista.


Trabalho que aponta uma das possibilidades como parte de inúmeras outras de trabalho para o sujeito fora da lógica do modo de produção capitalista, como por exemplo, o trabalho de pensar, elaborar, discutir, cuidar; o trabalho intelectual, político, doméstico, voluntário, comunitário. Trabalhos em que existam saídas para o silenciamento das vozes do discurso capitalista.


O trabalho de escuta faz com que o sujeito trabalhe. Trabalhe para si quando percebe que o real não tem nenhuma intenção sobre ele, fazendo então com que as tiranias proferidas percam a força sobre ele mesmo. Assim, é o trabalhar dos estagiários, um trabalho vivo, trabalho que me faz trabalhar!


Profa. Ana Magnólia Mendes
Líder do Grupo de Pesquisa Psicanálise e Trabalho
Brasília, 27 de Abril de 2021