“Tanto
é o sangue
que
os rios desistem de seu ritmo,
e
o oceano delira
e
rejeita as espumas vermelhas”
Cecília
Meireles
O último 1º de Maio foi
marcado pelo propósito de corrosão da legislação brasileira, ganhava espaço midiático
o discurso da “urgência” da Reforma Trabalhista, em momentos decisivos do que
viria a ser a Lei nº 13.467/16.
Os seus defensores
proclamavam ser um passo para a modernização do Estado brasileiro, pontapé para
a superação da crise econômica e a chegada do tão desejado desenvolvimento.
O que se viu, no entanto,
foi a propagação de falas – oficiais e pretensamente legítimas
- carregadas de estigmas, imprecisões e lugares-comuns desconectados da
realidade. O ano será lembrado pela precarização de dispositivos que garantiam
um patamar mínimo de direitos nas relações trabalhistas. Sem pudor, deram curso
à vexatória investida de relativizar o conceito de trabalho escravo. Também
vicejaram o preconceito e as ações fulminantes contra as estruturas e as instituições
destinadas a proteger e valorizar quem vive do trabalho, levando à adesão
inclusive de desavisados que delas dependem.
Já em 2018, malogrou a MP
808/2017, que prometia neutralizar, minimamente, pontos da Reforma, e se
revelou a chocante notícia de que um Tribunal Regional do Trabalho homenagearia
quem pretende extingui-lo.
Essa abordagem marca a
ideia desencantadora do emprego, reforça o sentimento de vergonha de ser
celetista, ser fichado, para incentivar o orgulho de ser empreendedor, pessoa jurídica.
É preciso desvelar, no
entanto, que máscaras como a autonomia e liberdade, sem que sejam calcadas em
igualdade, são na verdade formas de prender e criar miséria, e não de
extingui-la. Quando se fala em ter trabalhadores autônomos, donos do próprio
negócio, o que se vê é o acirramento do individualismo e da dependência
socioeconômica. É apenas uma forma de transferir a responsabilidade social para
o indivíduo, que, sozinho, sucumbe.
Quantos são aqueles que
afirmam que o trabalhador é empregado por comodismo, falta de iniciativa para
ter a própria empresa. Como se fosse sustentável ou mesmo possível um modelo
social em que todos são empresários. Ou ainda como se os que hasteiam a
bandeira do empreendedorismo efetivamente quisessem que todos os brasileiros
fossem e tivessem reais condições de ser seus concorrentes.
Os primeiros dados
pós-reforma revelam queda acentuada do número de ações ajuizadas, que,
infelizmente, não decorre da criação de empregos formais ou do cumprimento das
obrigações trabalhistas pelos empregadores, mas se dá pelo temor de ser punido
pelo “atrevimento” de buscar a reparação de direitos lesados.
Na ficção, falando sobre
relações de poder, o filme Liga da Justiça (2017) teve um diálogo que chamou a
atenção dos fãs. Barry Allen (Flash) pergunta a Bruce Wayne (Batman), qual era
seu superpoder. A resposta: “Eu sou rico”. Flash encerra o assunto com um
comentário risonho: “é um poder e tanto”!
Na vida real, no último
ano, esse superpoder – ser rico e desvalorizar quem vive do trabalho -
encontrou terreno fértil, defensores competentes e vítimas desamparadas, como
nunca!
A depuração dos discursos,
e das práticas, que revelam autêntico preconceito contra quem vive do próprio
trabalho é essencial à manutenção e quiçá ao aperfeiçoamento das possibilidades
de uma convivência social minimamente civilizada.
A simbologia contemporânea
de trabalho atrela-o à dignidade, relação que está estampada dentre os
princípios fundamentais da nossa Constituição, logo no início, e perpassa todo o
seu texto, que funda a ordem social tendo como base o primado do trabalho, e
como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.
O Dia do Trabalhador é dia
de luta, de lembrar conquistas obtidas com o derramamento de sangue. O ciclo
passado pode ter sido de ataques e ferimentos, mas o novo há de ser de
retomada, de resgate da verdade, dos fatos e dos direitos. Que não seja o ciclo
do super-herói, com poderes especiais, mas do anti-herói, cujo poder está em
realizar as coisas ditas banais do dia-a-dia e em perceber que a fraqueza dos
que aparentam ser superpoderosos é ser nada sem os que trabalham.
Que não fiquemos, como
bradou Cecília, “imunes, chorando, apenas sobre fotografias”, que nada mais
seja “um natural armar de desarmar de andaimes”, que lembremos desse sangue
derramado, e nos armemos novamente para combater o bom combate.
Luisa Nunes de Castro
Anabuki
Leomar Daroncho
Procuradores
do Trabalho--------------------------------------------------
Correio braziliense
Dia 30 de abril de 2018
Caderno Direito&Justiça
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