Engana-se quem pensa ser esta uma questão local, distante, restrita a
um país sabidamente descumpridor de normas mínimas de proteção ao trabalho humano.
Trata-se, ao contrário, de uma tragédia de proporções globais, que, com a dor
imensurável das centenas de vítimas e suas famílias, expõe as artérias da
lógica contemporânea da exploração de trabalho. Dezenas de grandes marcas internacionais
de confecção tinham relações produtivas diretas e indiretas com as fábricas do
Rana Plaza, sobretudo por cadeias de terceirização. Gigantes como Carrefour,
Walmart, Benetton, GAP, Bonmarché, El Corte Inglés e Primark, entre muitas outras,
fabricavam seus produtos naquele espaço de trabalho desumanizado. Nos
escombros, entre os corpos de trabalhadores e toneladas de entulho, foram
encontrados inúmeros registros de pedidos dessas multinacionais, além de peças
prontas e identificadas, etiquetas e embalagens que não deixam dúvida desse
envolvimento. Na sanha pela lucratividade, mancham de sangue humano suas
criações de moda.
A escala
assustadora do desabamento do Rana Plaza escancara a questão da exploração do
trabalho no mundo globalizado. Vêm à tona os esquemas de desconcentração
produtiva transnacional e de terceirização, pelos quais grandes empresas buscam
espaços de produção em que normas de proteção aos trabalhadores têm menor
rigor, em prática que ficou conhecida como dumping
social. Implanta-se, como aponta Alain Supiot (2008), um verdadeiro “shopping” de legislação, em que países
mais pobres entram em regime de concorrência para a atração de investimentos
internacionais. Livres de restrições estatais, os grandes grupos econômicos escolhem,
como quem compra qualquer tipo de produto, espaços locais que ofereçam menos
leis sociais e, assim, custem menos, mesmo que com sacrifícios à segurança e à
vida de trabalhadores.
O que um evento
como esse revela, em última análise, é uma correlação estrutural entre as
práticas produtivas e “técnicas de gestão” do capitalismo global e os efeitos
desumanizadores do trabalho explorado sem limites. Não se trata de uma mera
fatalidade, um acaso ou imprevisibilidade. Em esquemas de terceirização há, em
verdade, uma relação de assunção consciente de riscos pela diminuição das
proteções. São riscos que, além de conhecidos e assumidos, chegam a ser
estimulados e contabilizados para o aumento da lucratividade na produção.
Desde a ocorrência da tragédia do Rana Plaza, a discussão sobre a responsabilidade social de empresas em cadeias produtivas ganhou novo fôlego. Redimensionado em sua força jurídica, o próprio conceito de responsabilidade social afasta-se de um fundo publicitário e passa a incorporar instrumentos de real imputação por toda a cadeia de agentes envolvidos, a despeito das dificuldades formais que as ordens jurídicas possam apresentar. Reforçam-se instrumentos como o dever de vigilância, a noção de esfera de influência e relativiza-se a clássica defesa do desconhecimento das práticas por parte do tomador final de serviços.
Novas estratégias,
papéis institucionais e atores se aliam nesse quadro. É o que se vê no caso do Acordo Rana Plaza, construído após
enorme pressão diante da tragédia de 2013, com a participação de atores
governamentais, além de sindicatos de trabalhadores, ONGs e a Organização
Internacional do Trabalho, que assumiu a condução dos trabalhos. Tal acordo
resultou em uma experiência inovadora, com a formação de um fundo internacional
administrado pela OIT, em que cotizações das empresas envolvidas, além de
doações, visam indenizar vítimas e fazer face às despesas médicas.
Originalmente, previu-se a necessidade de 40 milhões de dólares para tal fundo,
dos quais, até o presente, cerca de 18 milhões foram levantados, tendo os
repasses para as vítimas e famílias sido iniciados neste ano.
E o Brasil nesta
história? Os últimos movimentos institucionais em relação à disciplina
trabalhista brasileira demonstram que o caso Rana Plaza pode não estar assim
tão distante. A figura da terceirização, prática que, em qualquer de suas
escalas, resulta em precarização generalizada, afeta intensamente também a
realidade local. A possibilidade de livrar-se juridicamente das
responsabilidades da prestação de trabalho, aproveitando-se dos resultados
financeiros dele, faz com que atores econômicos predatórios invistam todos os
seus esforços na máxima admissão da figura. No Brasil, esse é um tema que tem
já história relativamente longa, e se coloca hoje no centro da pauta
trabalhista, com alguns movimentos de extremo perigo: o Projeto de Lei 4.330/2004,
a pressão do patronato pela ampliação das possibilidades de terceirização e,
mais recentemente, a admissão por parte do Supremo Tribunal Federal de
repercussão geral no tema, sinalizando uma potencial mudança nos limites (já
vulneráveis) da compreensão do Tribunal Superior do Trabalho a respeito. O assunto
povoa, ainda, a agenda política da eleição presidencial, com algumas posições
amplamente favoráveis à terceirização como estratégia de produção.
É justamente aí
que os laços de conexão global se fecham. Permitir-se a ampliação da terceirização
significa contribuir diretamente com um modelo de exploração que se constrói na
fragmentação, incerteza e precariedade. Os estudos sobre os efeitos negativos
da terceirização em todas as esferas da vida humana são muitos, revelando impactos profundamente
negativos que vão desde a dificuldade de consolidação da identidade social e
emancipação coletiva do trabalhador, altos índices de adoecimento profissional,
acidentes e mortes, a vulneração da segurança em geral, até o rebaixamento de
padrões salariais e a inviabilização prática da representação coletiva. E nada
disso é efeito colateral. É precisamente com base nesses elementos que a
terceirização se torna uma bandeira daqueles que querem promover redução de
custos, ainda que com base nas mais odiosas violações a direitos humanos. Tudo
isso leva a crer que, na linha das estratégias do mundo global da produção,
Bangladesh, Brasil ou qualquer outro país podem estar muito mais próximos do
que se imagina, a depender dos caminhos institucionais tomados.
[1] Mestre e
Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, com período de
estágio doutoral junto ao Collège de France, em Paris. Membro do grupo de
pesquisa Trabalho, Constituição e
Cidadania. Bolsista CAPES.
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