Victor Hugo Boson[1]
Era
19 de maio de 2013 e alguns jornais veiculavam a notícia de um acidente fatal, ocorrido
na Bacia de Santos, envolvendo um trabalhador terceirizado. O plataformista
Leandro de Oliveira Couto, 34 anos, empregado de uma intermediadora de
mão-de-obra que prestava serviços à Petrobrás, morreu às 10 horas do dia
anterior, imediatamente após sofrer uma queda de uma altura de 20 metros na
plataforma SS-69[2].
A
morte de Leandro aconteceu setenta e duas horas após a morte de Pedro, um outro
plataformista terceirizado, no mesmo local e em condições muito semelhantes[3].
Tragédias
como as que vitimaram Leandro e Pedro se repetem pelos dias afora, acometendo
tantos outros no universo laboral brasileiro. Mas histórias fatais como essas
são revividas e reencenadas, presentificadas
e banalizadas, de forma
potencializada no contexto da terceirização de mão-de-obra.
Segundo
dados oficiais do Ministério do Trabalho e Emprego, divulgados em 2005 em
seminário sobre o tema, de cada dez acidentes de trabalho ocorridos no Brasil,
oito acabam por vitimar empregados terceirizados e, na hipótese de morte,
quatro entre cinco ocorrem nas prestadoras de serviço[4].
As
estatísticas setoriais demonstram um maior índice de acidentes com morte entre
trabalhadores terceirizados. Em 2010, para cada morte por acidente de trabalho
de empregado direto do setor elétrico brasileiro, corresponderam cerca de onze
mortes de empregados de terceirizadas[5].
No setor do petróleo, os dados da Federação Única dos Petroleiros mostram que,
entre 2000 e 2010, de 283 mortes por acidentes de trabalho, 228 (o equivalente
a 81%) foram de terceirizados[6].
Nas unidades da Petrobrás, nos últimos quatro anos, houve 65 mortes em
acidentes de trabalho, sendo que 61 delas vitimou empregados de intermediárias[7].
A
terceirização precariza a vida humana, ao ser um fator de elevação dos riscos
relativos à saúde e segurança do trabalhador. Dentre os fatores que se combinam
e influem na elevação exponencial dos riscos acidentários no trabalho
terceirizado, estão o mitigado controle fiscalizatório direto do local de
trabalho por parte do empregador, a existência de órgãos distintos para
mapeamento de riscos e acompanhamento de Programas Preventivos de trabalhadores
terceirizados (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes)[8],
a dificuldade dos órgãos públicos fiscalizatórios em identificar e chegar às
empresas prestadoras de serviços e seus empregados (dada a natureza de meras
intermediárias, com visibilidade menos expressiva para a sociedade civil e
Poder Público), a alta rotatividade dos terceirizados (44,9% contra 22% dos
diretamente contratados)[9]
e a precariedade dos seus vínculos e seus impactos negativos na adequada
formação para prevenção acidentária do trabalho.
Ademais,
em relação à jornada contratual de trabalho, as escassas fontes sobre o tema
indicam que os terceirizados são contratados para jornadas superiores à dos
empregados diretos[10],
isso sem considerar os maiores índices de horas extraordinárias, que importam
no maior desgaste físico e psíquico desses trabalhadores, mais distanciados do
chamado “direito à desconexão do trabalho”[11].
Some-se
a isso o fato de o modelo de relação triangular ser muito utilizado em setores
e para atividades que, por sua natureza, envolvem maior risco, de modo a
ampliar ainda mais as ocorrências acidentárias graves e óbitos do trabalho.
Desse
modo, quando o assunto é a preservação da higidez e da vida, a subcontratação
de mão-de-obra cria um contexto fático de maior vulnerabilidade dos
trabalhadores inseridos na sua dinâmica. Aqui, o empregado terceirizado se torna
alguém menor, menos empregado, porque mais precarizado em seu contexto, como nota
Márcio Túlio Viana[12].
A
geometria da terceirização concorre para um modelo de gestão da força de
trabalho que acaba por potencializar transgressões ao direito constitucional a
um meio ambiente de trabalho saudável (art. 200, VIII, CF/88), já
historicamente frágil no contexto brasileiro, e ao direito fundamental de redução dos riscos inerentes ao trabalho, mediante normas
de saúde, higiene e segurança (art. 7º, XXII, CF/88), que são sempre
interpretados à luz da determinação da progressividade e não retrocesso social
dos trabalhadores urbanos e rurais (art. 7º, caput, CF).
Tais diretrizes constitucionais não são pontos meramente
programáticos, muito menos promessas a serem cumpridas de acordo com a conveniência
empresarial. Longe disso, como todos os mandamentos constitucionais, são
revestidas da mais alta dimensão de eficácia, sequer dependendo de regulação
posterior para se efetivar.
Tamanha a importância desses direitos, que doutrina e
jurisprudência caminharam no sentido de que toda a densidade normativa relacionada
à saúde e segurança do trabalhador tem características de indisponibilidade, em face do alto valor social que encerra e porque
deriva do assentado da dignidade da pessoa humana e da
inviolabilidade do direito à vida e à saúde
(art. 5º, caput e art. 196, caput, CF/88). É dizer, esse plexo
protetivo, ainda que infraconstitucional, guarda uma necessidade de
irrecusabilidade da sua observância e exige uma maior intensidade no nível da
imperatividade dos seus comandos: são de ordem
pública.
É nessa esteira que os métodos de organização do trabalho
que contrastam com o conteúdo das normas protetivas à integridade e saúde do
trabalhador, caso da terceirização, devem ser considerados incompatíveis com a
ordem jurídica nacional. Lembre-se: a diretriz do art. 170, caput, da Constituição condiciona a
livre iniciativa ao desenvolvimento dos pressupostos de respeito à classe
trabalhadora como segmento social a merecer adequada proteção contra a
truculência do sistema capitalista, mediante a valorização do trabalho.
O modelo triangular de contratação, do modo como efetivado
na atualidade, considerados os prejuízos impostos à saúde e segurança do
trabalhador, comporta, no entanto, dimensões de reificação das relações de
trabalho que tornam inconciliável a prática produtiva com os pilares de
dignidade humana e valorização do trabalho (art. 1º, III e IV, CF/88),
influindo para um processo de desumanização das relações e de antagonismo aos
marcos constitucionais de tratamento do trabalho humano.
Na tessitura relacional de tudo isso, que perpassa pelos
dois acidentes e chega à pergunta sobre o lugar conferido à Constituição e à pessoa
no contexto produtivo atual, despontam contrastes os mais diversos. Entre a
Constituição e a realidade da terceirização, os dados anunciam a antítese entre
o normativo e o fático, ou, na linguagem dos juristas, entre o dever-ser e o ser[13].
Talvez Leandro e Pedro tenham sido vítimas dessa antítese, deflagrada na disjunção
conflituosa entre, de um lado, a norma que quer proteger o trabalho e, de
outro, a realidade produtiva que contraria incisivamente o seu comando.
E essas cenas dos capítulos quotidianos da vida do direito
e do trabalho exigem uma postura de reflexão, pelos atores sociais, acerca de
quais os caminhos seguir na busca pela efetividade da norma constitucional, o
que implica, em paralelo, na própria reflexão sobre os limites que a
Constituição impõe à terceirização. Essa é uma tarefa do tempo presente. Porque
na dinâmica da Constituição não há espaços para a demora.
[1]
Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Email: victorhboson@ufmg.br
[4]
Terceirização e Desenvolvimento: uma
conta que não fecha. Dossiê sobre o impacto da terceirização sobre os
trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos. Elaboração:
CUT/DIESSE, Setembro, 2011, p. 14. Disponível em http://iurbanas.hospedagemdesites.ws/wordpress/wp-content/uploads/2012/01/terceirizacao.pdf.
[5]
Segundo dados da Fundação Coge, disponíveis em: http://www.funcoge.org.br/csst/Sintese_Relatorio_2010.pdf.
A Fundação Coge, desde o ano 2000, é a instituição que tem realizado a
elaboração do Relatório de Estatísticas de Acidentes no Setor Elétrico
Brasileiro.
[6]
Disponível em: http://www.fup.org.br/2012/tercerizacao/2219234-cut-e-entidades-reafirmam-luta-contra-a-terceirizacao-que-precariza-as-relacoes-de-trabalho.
Acesso em 10/10/2013.
[7]
Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/saude/204713-terceirizados-sofrem-mais-acidentes-em-plataformas-de-petroleo.html.
Acesso em 10/10/2013.
[8]
Ver, a propósito, a Norma
Regulamentar n. 5 do Ministério do Trabalho e Emprego.
[9]
Terceirização e Desenvolvimento: uma
conta que não fecha. Dossiê sobre o impacto da terceirização sobre os
trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos. Elaboração:
CUT/DIESSE, Setembro, 2011, p. 06. Disponível em: http://iurbanas.hospedagemdesites.ws/wordpress/wp-content/uploads/2012/01/terceirizacao.pdf.
Quanto ao tempo de emprego, a diferença entre trabalhadores diretos e terceiros
é de 5,8 anos para os trabalhadores diretos, e de 2,6 anos para os terceiros.
[10]
Fonte: Rais, 2010. Elaboração DIEESE/CUT Nacional, 2011. Nota: setores
agregados segundo Classe/CNAE 2.0. Não estão contidos os setores da
agricultura. Esses dados foram obtidos na RAIS 2010 On line.
[11]
Jorge Luiz Souto Maior apresenta o direito à desconexão do trabalho, que pode
ser entendido como a limitação do tempo de trabalho a quantidades que sejam
condizentes, por exemplo, com a perspectiva da proteção da vida privada e da saúde
do trabalhador, sob o ponto de vista do interesse social e da humanização das
relações de trabalho. Ver: http://portal.trt15.jus.br/documents/124965/125420/Rev23Art17.pdf/0b3b7bb7-f57d-4782-9ad8-91fdc428c88b
[12] VIANA,
Márcio Túlio. As várias faces da terceirização. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 54, p. 141-156,
jan./jun. 2009, pág. 141.
[13]
Trata-se, aqui, da distinção entre ser
e dever-ser em termos ontológicos, trabalhada na Teoria Pura
do Direito, de Kelsen.
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