terça-feira, 21 de outubro de 2014

O MERCADO E O MITO DA EMANCIPAÇÃO FEMININA



Lara Parreira de Faria Borges

Em recente notícia veiculada na internet, anunciou-se que empresas como Facebook e Apple financiarão o congelamento de óvulos de suas empregadas que desejarem dedicar-se à carreira sem abrir mão de em um futuro longínquo usufruírem da maternidade. Assim, essas empresas garantem que suas funcionárias dediquem-se de forma competitiva à carreira profissional e respectivas promoções em igualdade em relação aos seus colegas homens.
A notícia foi apresentada nos seguintes termos:

Especialistas ouvidas pela NBC entendem que oferecer um aporte dessa magnitude é uma forma de dar um retorno às profissionais por dedicarem seus anos mais saudáveis às empresas. Ao optar pelo congelamento, elas têm a opção de manter os óvulos parados até o momento que acharem mais indicado para a gravidez.
A atitude foi vista como niveladora, porque as mulheres deixam de se preocupar com um relógio biológico e ganham mais liberdade de escolha, segundo a reportagem. Assim, Apple e Facebook dão um passo importante pela igualdade de sexos.[1] (Grifos acrescidos)

         A questão que surge de imediato é se esse tipo de programa empresarial é uma promoção ao desejo de emancipação feminina ou se se trata de fortalecer ainda mais como padrão de empregado o trabalhador masculino. A dúvida ainda se torna ainda mais instigante quando se considera que essa forma de “investimento” e “incentivo” para que as empregadas congelem seus óvulos aproxima-se de uma forma de a empresa controlar o corpo de suas funcionárias em uma expressão típica de biopoder nos termos de Michel Foucault.
O biopoder foi utilizado como ferramenta essencial do capitalismo para inserir os corpos nos meios de produção de forma controlada e ajustada.[2]

Este bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. Mas, o capitalismo exigiu mais do que isso; foi-lhe necessário o crescimento tanto de seu reforço quanto de sua utilidade e sua docilidade; foram-lhe necessários métodos de poder capazes de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem por isto torná-las mais difíceis de sujeitar; se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado, como instituições de poder, garantiu a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e de bio-política, inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração das coletividades), agiram no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das forças que estão em ação em tais processo se sustentam, operaram, também, como fatores de segregação e de hierarquização social, agindo sobre as forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos múltiplos.[3]


         Quando Nancy Fraser lembra que o grande problema do movimento feminista na segunda metade do século XX foi enxergar no Estado Social um reforço das opressões de gênero e acreditar que o mercado seria capaz de emancipar as mulheres das tradições machistas, a filósofa nos alerta para o perigo do mercado também reproduzir opressões e, inclusive, se valer de tradições machistas para explorar as mulheres ainda mais.
Nancy Fraser demonstra que os teóricos de filosofia abandonaram a análise e crítica do capitalismo, por serem estas consideradas redutoras, deterministas e ultrapassadas, sendo que a teoria feminista também perdeu o enfoque sobre a crise do capitalismo.[4]
         As empresas contam com um padrão de trabalhador do sexo masculino e oprimem tanto homens quanto mulheres para que se adequem a esse padrão. As organizações esperam que seus funcionários dediquem-se 24 horas por dia, 7 dias por semana ao trabalho de forma que todas as demais áreas de sua vida devem ser cuidadas por uma outra pessoa, em regra do sexo feminino.
         O pressuposto de gênero invisível adotado pela maioria das organizações empresariais é a de que o trabalhador deve esforçar-se ao máximo e dedicar todo o seu tempo para realizar seu trabalho.[5]  Como consequência, há a premissa de que o trabalhador tem um corpo masculino que não gesta uma criança, tampouco precisa ocupar-se de organizar os demais aspectos de sua vida pessoal (como cuidar da casa).[6]
Naturaliza-se, assim, uma divisão do trabalho em razão do gênero (divisão sexual do trabalho), tanto entre os trabalhadores de colarinho azul como entre os trabalhadores de colarinho branco, reafirmando o papel do homem e da mulher no âmbito doméstico e no mercado de trabalho ao se associar profissões produtoras (ex: médico, advogado, etc.) a homens e atividades acessórias a mulheres (ex: enfermeira, paralegal, etc. ).[7] Em razão desse contexto, a cultura norte-americana valoriza e festeja homens de classe média que afirmam um padrão de masculinidade excluindo de posições de liderança e poder mulheres, bem como outros homens que não se adequam aos padrões de masculinidade exigidos.[8]
         Esse padrão nos leva a refletir sobre o seguinte questionamento do filósofo búlgaro, radicado em Paris, Tzvetan Todorov:

Vai na mesma direção a exigência de privilegiar o trabalho sobre todas as outras atividades da pessoa. O “bom” empregado, que receberá uma promoção, é o que se dispõe a sacrificar suas noites para participar de reuniões urgentes, ou seus fins de semana em casa para preparar a documentação do dia seguinte. Sua vida de família é forçosamente prejudicada. Os dois genitores, mas sobretudo os pais, quando têm postos de responsabilidade, só vêem os filhos nas manhãs de domingo, o que apresenta um problema para a carreira profissional das mulheres, menos prontas a sacrificar a vida familiar. No entanto, certas feministas as encorajam nesse caminho. Uma jornalista alemã que exerceu altas responsabilidades se interroga sobre as razões pelas quais tão poucas empresas de seu país incluem mulheres em seu quadro de direção, e fica desolada ao constatar: “Mesmo as que são diplomadas e se dizem emancipadas escolhem, por conforto, adequar-se ao modelo de dona de casa, ocupar-se dos filhos”.
         Tal afirmação subentende que a mulher que sacrifica uma parte da carreira para enriquecer sua vida por outras formas de crescimento não é verdadeiramente emancipada, isto é, livre. Portanto, projeta-se sobre as mulheres um modelo masculino já obsoleto, e até caricato, no qual só importa o sucesso profissional, no qual a liberdade é concebida como uma ausência de apegos, como uma vida afetiva deserta. As mulheres só podem escolher permanecer em casa por preguiça e desânimo, e não porque consideram que a relação com os filhos é um enriquecimento da vida. Enfim, o espantalho da “dona de casa” aí está para estigmatizar o fato de “ocupar-se dos filhos”: como se esta última atividade fosse uma condenação à exclusão, e como se se tratasse de um “ou isto ou aquilo” excludente – ao passo que hoje, a maioria das mulheres aspira tanto a trabalhar quanto a conviver com os filhos. Em vez de estigmatizar as mulheres por algo que, na realidade, é uma sabedoria, seria preferível, parece-me, reprovar os homens por não as imitarem, reduzindo um pouco as reuniões noturnas e a preparação de documentos em casa, para consagrar-se mais à interação com os filhos, experiência de uma riqueza excepcional.[9] (Grifos acrescidos)


         Assim, restam várias perguntas: será que o melhor seria mesmo incentivar que as mulheres congelem seus óvulos para que se pareçam mais com os homens e, com isso, atendam ao padrão de trabalhador masculino tão desejado pelas empresas? Ou seria mais adequado que os homens tivessem o incentivo para compartilhar de forma igual as responsabilidades pela gestação e educação de seus filhos? A verdadeira emancipação é aquela que obriga as mulheres a se adequarem a um padrão masculino de opressão que violenta tanto homens quanto mulheres?
        

Lara Parreira de Faria Borges é mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília.



[1]  Notícia: Apple e Facebook passam a bancar congelamento de óvulos para funcionárias. Disponível: http://olhardigital.uol.com.br/pro/noticia/44663/44663 Acesso em 20.10.2014.
[2] FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade. A vontade de saber.  Volume 1, Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1988, p. 132.
[3] Idem, p. 132 e 133.
[4] FRASER, Nancy. Mercantilização, proteção social e emancipação: as ambivalências do feminismo na crise do capitalismo. In: Revista Direito GV, São Paulo 7(2), jul-dez 2011, p. 618.
[5] McGINLEY, Ann C. Creating masculine identities: bullying and harassment “because of sex”. In: 79 University of Colorado Law Review 1151, 2008, p. 1162.
[6] Idem, p. 1162-1163.
[7] Idem, p. 1163.
[8] Idem, p. 1163.
[9] TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 127 e 128.

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