Lara
Parreira de Faria Borges
Em recente
notícia veiculada na internet, anunciou-se que empresas como Facebook e Apple
financiarão o congelamento de óvulos de suas empregadas que desejarem
dedicar-se à carreira sem abrir mão de em um futuro longínquo usufruírem da
maternidade. Assim, essas empresas garantem que suas funcionárias dediquem-se
de forma competitiva à carreira profissional e respectivas promoções em
igualdade em relação aos seus colegas homens.
A notícia
foi apresentada nos seguintes termos:
Especialistas ouvidas pela NBC entendem que
oferecer um aporte dessa magnitude é uma forma de dar um retorno às
profissionais por dedicarem seus anos mais saudáveis às empresas. Ao optar pelo
congelamento, elas têm a opção de manter os óvulos parados até o momento que
acharem mais indicado para a gravidez.
A atitude foi vista como niveladora, porque as mulheres deixam de se
preocupar com um relógio biológico e ganham mais liberdade de escolha, segundo a reportagem. Assim, Apple e Facebook dão um passo importante
pela igualdade de sexos.[1]
(Grifos acrescidos)
A questão que surge de imediato é se esse tipo de programa
empresarial é uma promoção ao desejo de emancipação feminina ou se se trata de
fortalecer ainda mais como padrão de empregado o trabalhador masculino. A
dúvida ainda se torna ainda mais instigante quando se considera que essa forma
de “investimento” e “incentivo” para que as empregadas congelem seus óvulos
aproxima-se de uma forma de a empresa controlar o corpo de suas funcionárias em
uma expressão típica de biopoder nos termos de Michel Foucault.
O
biopoder foi utilizado como ferramenta essencial do capitalismo para inserir
os corpos nos meios de produção de forma controlada e ajustada.[2]
Este bio-poder, sem a menor
dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só
pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção
e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos
econômicos. Mas, o capitalismo exigiu mais do que isso; foi-lhe necessário o
crescimento tanto de seu reforço quanto de sua utilidade e sua docilidade;
foram-lhe necessários métodos de poder capazes de majorar as forças, as
aptidões, a vida em geral, sem por isto torná-las mais difíceis de sujeitar; se
o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado, como instituições de poder,
garantiu a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e de
bio-política, inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em
todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem diversas (a
família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração
das coletividades), agiram no nível dos processos econômicos, do seu
desenrolar, das forças que estão em ação em tais processo se sustentam,
operaram, também, como fatores de segregação e de hierarquização social, agindo
sobre as forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações de
dominação e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do
capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças
produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados
possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos
múltiplos.[3]
Quando Nancy Fraser lembra que o grande problema do
movimento feminista na segunda metade do século XX foi enxergar no Estado
Social um reforço das opressões de gênero e acreditar que o mercado seria capaz
de emancipar as mulheres das tradições machistas, a filósofa nos alerta para o
perigo do mercado também reproduzir opressões e, inclusive, se valer de
tradições machistas para explorar as mulheres ainda mais.
Nancy
Fraser demonstra que os teóricos de filosofia abandonaram a análise e crítica
do capitalismo, por serem estas consideradas redutoras, deterministas e
ultrapassadas, sendo que a teoria feminista também perdeu o enfoque sobre a
crise do capitalismo.[4]
As empresas contam com um padrão de trabalhador do sexo
masculino e oprimem tanto homens quanto mulheres para que se adequem a esse
padrão. As organizações esperam que seus funcionários dediquem-se 24 horas por
dia, 7 dias por semana ao trabalho de forma que todas as demais áreas de sua
vida devem ser cuidadas por uma outra pessoa, em regra do sexo feminino.
O pressuposto de gênero invisível adotado pela maioria das
organizações empresariais é a de que o trabalhador deve esforçar-se ao máximo e
dedicar todo o seu tempo para realizar seu trabalho.[5] Como consequência, há a premissa de que o trabalhador tem um
corpo masculino que não gesta uma criança, tampouco precisa ocupar-se de organizar os demais aspectos de sua vida pessoal (como cuidar da casa).[6]
Naturaliza-se, assim, uma divisão do trabalho em razão do
gênero (divisão sexual do trabalho), tanto entre os trabalhadores de colarinho
azul como entre os trabalhadores de colarinho branco, reafirmando o papel do
homem e da mulher no âmbito doméstico e no mercado de trabalho ao se associar
profissões produtoras (ex: médico, advogado, etc.) a homens e atividades acessórias a mulheres (ex: enfermeira, paralegal, etc. ).[7] Em razão desse contexto, a cultura norte-americana valoriza e festeja homens de classe média que afirmam um padrão de masculinidade excluindo de posições de liderança e poder mulheres, bem como outros homens que não se adequam aos padrões de
masculinidade exigidos.[8]
Esse padrão nos leva a refletir sobre o seguinte
questionamento do filósofo búlgaro, radicado em Paris, Tzvetan Todorov:
Vai na mesma direção a exigência
de privilegiar o trabalho sobre todas as outras atividades da pessoa. O “bom”
empregado, que receberá uma promoção, é o que se dispõe a sacrificar suas
noites para participar de reuniões urgentes, ou seus fins de semana em casa
para preparar a documentação do dia seguinte. Sua vida de família é
forçosamente prejudicada. Os dois genitores, mas sobretudo os pais, quando têm
postos de responsabilidade, só vêem os filhos nas manhãs de domingo, o que
apresenta um problema para a carreira profissional das mulheres, menos prontas
a sacrificar a vida familiar. No entanto, certas feministas as encorajam nesse
caminho. Uma jornalista alemã que exerceu altas responsabilidades se interroga
sobre as razões pelas quais tão poucas empresas de seu país incluem mulheres em
seu quadro de direção, e fica desolada ao constatar: “Mesmo as que são
diplomadas e se dizem emancipadas escolhem, por conforto, adequar-se ao modelo
de dona de casa, ocupar-se dos filhos”.
Tal
afirmação subentende que a mulher que sacrifica uma parte da carreira para
enriquecer sua vida por outras formas de crescimento não é verdadeiramente
emancipada, isto é, livre. Portanto, projeta-se sobre as mulheres um modelo
masculino já obsoleto, e até caricato, no qual só importa o sucesso
profissional, no qual a liberdade é concebida como uma ausência de apegos, como
uma vida afetiva deserta. As mulheres só podem escolher permanecer em casa por
preguiça e desânimo, e não porque consideram que a relação com os filhos é um
enriquecimento da vida. Enfim, o espantalho da “dona de casa” aí está para
estigmatizar o fato de “ocupar-se dos filhos”: como se esta última atividade
fosse uma condenação à exclusão, e como se se tratasse de um “ou isto ou
aquilo” excludente – ao passo que hoje, a maioria das mulheres aspira tanto a
trabalhar quanto a conviver com os filhos. Em
vez de estigmatizar as mulheres por algo que, na realidade, é uma sabedoria,
seria preferível, parece-me, reprovar os homens por não as imitarem, reduzindo
um pouco as reuniões noturnas e a preparação de documentos em casa, para
consagrar-se mais à interação com os filhos, experiência de uma riqueza
excepcional.[9] (Grifos acrescidos)
Assim, restam várias perguntas: será que o melhor seria
mesmo incentivar que as mulheres congelem seus óvulos para que se pareçam mais
com os homens e, com isso, atendam ao padrão de trabalhador masculino tão
desejado pelas empresas? Ou seria mais adequado que os homens tivessem o
incentivo para compartilhar de forma igual as responsabilidades pela gestação e
educação de seus filhos? A verdadeira emancipação é aquela que obriga as
mulheres a se adequarem a um padrão masculino de opressão que violenta tanto
homens quanto mulheres?
Lara Parreira de Faria Borges é mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília.
[1] Notícia: Apple e
Facebook passam a bancar congelamento de óvulos para funcionárias. Disponível: http://olhardigital.uol.com.br/pro/noticia/44663/44663
Acesso em 20.10.2014.
[2] FOUCAULT,
Michel. A história da sexualidade. A vontade de saber. Volume 1, Tradução: Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1988,
p. 132.
[3]
Idem, p. 132 e 133.
[4] FRASER, Nancy. Mercantilização, proteção social e emancipação:
as ambivalências do feminismo na crise do capitalismo. In: Revista Direito GV, São Paulo 7(2), jul-dez 2011, p. 618.
[5] McGINLEY, Ann C. Creating
masculine identities: bullying and harassment “because of sex”. In: 79 University of Colorado Law Review 1151,
2008, p. 1162.
[9] TODOROV, Tzvetan. Os inimigos
íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 127 e 128.
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