Ileana Neiva Mousinho*
A
terceirização de serviços tem sido apresentada à sociedade como uma forma do
Estado brasileiro ter mais eficiência na prestação de serviços públicos. Por
essa propaganda, se a Administração Pública contrata empresas prestadoras de
serviços para executar atividades que não são atividades tipicamente estatais,
e concentra seus esforços nas atividades estatais típicas (saúde, educação,
segurança pública), o Estado maximizaria a sua capacidade de bem realizar essas
atividades essenciais, realizando os direitos fundamentais dos cidadãos. Por
outro lado, ao cometer as atividades não estatais a empresas especializadas, o
Estado aumentaria o grau de satisfação da sociedade, uma vez que, com a sua especialização,
essas empresas prestariam um serviço muito melhor.
Ledo
engano! Em primeiro lugar, o que vemos hoje não é, também, o projeto em
execução, de alguns governantes, de terceirizar saúde, educação e segurança?
Logo, o discurso de que só seriam terceirizadas atividades que não fossem
essenciais ao Estado já se mostrou falso.
Em
segundo lugar, como distinguir o que é atividade estatal típica? A limpeza
urbana não é atividade essencial da administração pública? E a limpeza urbana
não está relacionada ao direito fundamental à saúde, pois se relaciona à
higiene e à prevenção de doenças?
Em
terceiro lugar, que especialização detêm as empresas prestadoras de serviços (na verdade,
são empresas de locação de todo tipo de mão de obra), se, quando entregam o orçamento dos seus
serviços à administração pública, nas chamadas “planilhas de custos e formação
de preços”, inserem todos os gastos que terão com os empregados que utilizarão
nos contratos de prestação de serviços, inclusive treinamentos. Ou seja, a
administração pública contratante paga pelo treinamento dos empregados da
contratada. Ora, mas não contratou a contratada pela sua expertise? Então, por que tem que pagar pelo treinamento dos seus
empregados?
O absurdo é maior, ainda, quando se sabe que a
empresa contratante dos empregados não raro aproveita os empregados da contratada
anterior, cujo contrato com a administração pública terminou, e que estão
trabalhando no órgão público há tempos, e, portanto, mais do que treinados na
rotina e nos serviços naquele órgão. No entanto, contratação após contratação,
lá está, nas planilhas de custos e formação de preços dos contratos, a cobrança
dos valores de treinamentos. E pior, tais treinamentos não são sequer
realizados.
O
Ministério Público do Trabalho em várias investigações e ações judiciais já
demonstrou que, nessas sucessivas contratações de empresas prestadoras de
serviços terceirizados, os empregados são coagidos a devolver verbas
rescisórias, sob pena de não serem “aproveitados” na empresa que será a nova
contratada da administração pública.
O que a sociedade brasileira vê
desfilar pelo noticiário da TV e dos jornais são casos e casos de corrupção em
que a terceirização é o mecanismo da corrupção. Cita-se, um exemplo: a Operação
Hígia, deflagrada nos Estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, onde as
investigações demonstraram que as carteiras de trabalho dos empregados eram
fotocopiadas para comprovar aos gestores de contratos o número de empregados
previstos no contrato, mas, na verdade, a contagem do número de empregados,
feita por agentes da Polícia Federal, nos diversos hospitais, demonstrou que
havia um número menor de empregados trabalhando. Repetia-se o mesmo nome de
empregado, e a cópia de suas carteiras de trabalho, em diversos locais de
trabalho.
Sob o discurso da eficiência da
terceirização, o que se emerge, na realidade, é a eficiência com que a
terceirização tem sido utilizada para fraudes com essa.
Outra
forma de corrupção ocorre com a contratação emergencial, com dispensa de licitação,
de empresas prestadoras de serviços terceirizados ou de falsas Organizações
Sociais (OS), que superfaturam os preços dos contratos de prestação de serviços
e servem, ainda, aos interesses econômicos e eleitorais do político que
engendrou a sua contratação, disponibilizando-se a contratar, como empregados,
as pessoas indicadas pelo político.
Além
do valor superfaturado ser rateado entre as empresas e o(s) administrador (es)
público(s) e político(s) – ganhos financeiros - há ainda o ganho eleitoral, pois
o político emprega seus cabos eleitorais ou pessoas que passarão a votar nele.
E tudo isso, em burla ao concurso público e ao princípio da impessoalidade da
administração pública.
Há
muito tempo a linha entre atividade-fim e atividade- meio vem sendo burlada
pela administração pública. A terceirização dos serviços de saúde tem ocorrido
em algumas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) em todo o Brasil, com
contratação de organizações sociais. Em Natal, em passado recente, o Município
de Natal terceirizou com a Associação Marca, que quarteirizou com a Associação
Salute, ambas do Rio de Janeiro, a administração e contratação de pessoal para
a UPA de Pajuçara. Após atuação do Ministério Público Estadual e designação
judicial de um interventor, houve a economia de milhões de reais para os cofres
municipais.
Terceirizar, com certeza, não é mais
barato...
Um
outro dogma pró terceirização é de que a terceirização de serviços de saúde
gera mais eficiência, pois os servidores do SUS não se interessaram pelo
serviço. Lança-se no servidor público a pecha de descompromissado, para “vender
o peixe” da terceirização, enaltecida como mais eficiente porque não se tem as
“amarras” da administração pública (contrata-se, diretamente, sem licitação;
compra-se, diretamente, sem licitação), como se o mal estivesse no procedimento
licitatório, quando está na falta dele ou no seu desvirtuamento.
Há,
portanto, uma propaganda levada a efeito há muito anos para o cidadão achar que
a terceirização é boa para o Estado brasileiro. No entanto, o que o cidadão
atento pode observar é o contrário, pois terceirizar tem saído muito caro para
o Estado brasileiro: ou há superfaturamento de preços; ou empresas “somem”,
deixando os seus empregados sem o pagamento de verbas salariais e rescisórias,
e o Estado arca com a responsabilidade subsidiária por tais débitos trabalhistas.
A
verdade é que, ao escolher terceirizar serviços, os administradores públicos,
no caso específico da saúde, educação e segurança, passaram a não investir em
tais serviços. Hospitais desaparelhados, anos sem fazer concurso público, ou
seja, sucateamento do sistema público de saúde, para que, quando a “solução” da
terceirização fosse dada, a ideia caísse em solução fértil. Uma população
desencantada com os problemas da saúde pública, iria ficar encantada com uma
UPA que funcionasse com um relógio suíço, totalmente terceirizada. Só que não
funciona... Custa mais caro e não funciona.
Os
valores repassados para as empresas prestadoras de serviços e Organizações Sociais,
se fossem destinados aos serviços públicos também gerariam eficiência. E se há,
hoje, ineficiência, não é ela gerada pela Lei de Licitações, mas por mau
gerenciamento dos recursos públicos.
Então,
por que não investir em treinamento e capacitação dos servidores públicos; por
que não instituir cargos em comissão em valores compatíveis com a
responsabilidade de ser diretor de hospital, e exigir desse gestor a
capacitação e a formação necessárias para ocupar tal cargo, com dedicação
exclusiva?
Em
vez de qualificar e valorizar o servidor público, e também, exigir disciplina,
cumprimento de horário e eficiência, e, em caso de descumprimento desses
deveres, aplicar as sanções previstas nos estatutos dos servidores públicos, a
opção do Estado brasileiro tem sido aumentar o espectro da terceirização,
invadindo a educação, a saúde e a segurança pública.
Se
contratar empresas prestadoras de serviços tem sido a opção para as chamadas
atividades-meio; contratar Organizações Sociais, OSCIPS, ONGs (do chamado
Terceiro Setor) tem sido a opção, nas atividades-fim. Justifica-se que se trata
do Terceiro Setor contribuir com o Estado, para a realização de suas atividades
essenciais.
Um
exame do que ocorre na realizada destrói essa tese.
Basta
verificar-se que, se há alegação de carência de recursos estatais para a prestação
de serviços de saúde e educação, só haveria real ajuda dessas organizações sem
fins lucrativos, se elas trouxessem recursos financeiros adicionais para o
Estado, de modo a suplementar a capacidade financeira estatal, e, assim, juntos
prestarem os serviços de educação e saúde.
O
que se observa, porém, é que essas entidades (ou pseudo entidades) sem fins
lucrativos, recebem recursos do Estado e não entregam bens ou recursos
financeiros para suplementar a capacidade estatal de prestar serviços públicos.
São contratadas, apenas, com a alegação de que têm especialização naquela área,
que sabem administrar muito bem, que arregimentarão empregados sem as amarras
do setor público (leia-se concurso público) e que despedirão, com facilidade
(sem necessidade de processo administrativo prévio, com ampla defesa), os
empregados ineptos ou desinteressados. Em suma, essas Organizações Sociais e
congêneres, vendem, tão somente, a terceirização, e no bojo dessa, infelizmente,
tem-se sido verificada a corrupção.
Essa realidade deve ser muito bem
analisada pelo cidadão, para que seja crítico em relação ao discurso em defesa
da terceirização.
E
não é preciso mais do que um exercício de raciocínio lógico para os cidadãos
entenderem que, quando há terceirização da limpeza urbana, ou da poda de
árvores, como se pode mensurar corretamente o serviço prestado? Faz-se uma
previsão de gasto, estima-se que tantas toneladas de lixo serão recolhidas e
tantas árvores serão podadas. Mas como controlar o número real, como saber se a
administração pública não está pagando a mais?
Os
valores vultosos dos contratos de prestação de serviços de limpeza urbana e a
“complexidade” de suas planilhas de preços (argumento sempre utilizadas para
que não tenham a necessária transparência) não deixam dúvidas: não se trata de
um serviço barato e, considerando-se a variação do lixo recolhido, apesar da
possibilidade de pesá-lo, as estimativas de preços, com certeza, não são feitas
a menor.
Cita-se
como exemplo dessa assertiva, o fato de que o Tribunal de Contas do Estado do
Rio Grande do Norte corrigiu o projeto básico e os preços dos serviços de
coleta de lixo de Natal, que seriam objeto de licitação. O Município acatou a
recomendação e lançou edital com o preço do serviço calculado com a análise
conjunta dos técnicos do Tribunal de Contas do Estado. O resultado? As empresas
que prestavam serviços não aceitaram o preço proposto e a licitação foi
deserta. Destaque-se que o valor estimado pela administração pública era de R$ 333,5 milhões e o preço orçado pelas empresas variava
de R$ 391,8 a 393,2 milhões. Uma diferença de preço em torno de 60 milhões de
reais.
Portanto, além dos serviços
terceirizados custarem muito caro, a terceirização de serviços torna a
administração pública refém das contratadas. Se a administração não aceitar o
preço proposto, não recebe o serviço, e já sem estrutura para executá-lo, mercê
dos sucessivos anos sem concurso público e sem aquisição de máquinas e
equipamentos, fica refém das contratadas.
Um outro fato confirma que a Administração
Pública já está refém da terceirização. Os serviços terceirizados por
intermédio de cooperativas médicas são interrompidos quando a Administração Pública
não aceita os preços propostos pelas entidades. No Rio Grande do Norte, várias
cooperativas médicas prestam serviços ao SUS, em especialidades como cardiologia, pediatria, ortopedia,
neurocirurgia e anestesia. Logo, setores essenciais da saúde são “terceirizados” e não há médicos
estatutários em número suficiente, nessas especialidades. Não aceitar o preço
proposto, significa paralisar os serviços de saúde, o que, efetivamente,
ocorreu, várias vezes, quando o Estado do Rio Grande do Norte e o Município de
Natal, tentaram negociar valores menores.
Diante desse quadro, que
evidencia total dependência do Estado das cooperativas médicas, pela opção
errônea em não realizar concurso público e não elaborar um plano de cargos e
salários para a carreira de médico, o que se observa é que a administração pública
fica refém das cooperativas médicas.
Quando o Estado do Rio
Grande do Norte decidiu não contratar mais cooperativas e realizar concurso
público, precisou, dada a necessidade
emergencial, realizar primeiro uma chamada pública, até que fosse organizado o
concurso público. Foram realizadas cinco chamadas públicas para contratar
médicos. Porém, não conseguiu encontrar profissionais que se interessassem pelo
certame, inclusive, tendo o Ministério Público Estadual investigado que os
profissinais eram convencidos pelas cooperativas a não aderirem ao
certame.
A administração pública além de refém,
sofre calote na terceirização.
Não
é fato desconhecido, que, ao final de muitos contratos de prestação de serviços
terceirizados, as empresas contratadas “somem” e não pagam aos seus empregados
as verbas rescisórias, responsabilidade que passa a ser suportada (duplamente)
pela administração pública.
Mecanismos
têm sido pensados ao longo do tempo para controlar a execução dos contratos de
prestação de serviços. A Lei de Licitações estabelece, no seu art. 67, que a
execução dos contratos deverá ser acompanhada e fiscalizada por um
representante da Administração Pública, especialmente designado para tal fim. A
Lei de Transparência determina que os entes da Federação disponibilizarão a
toda pessoa física ou jurídica os dados referentes aos contratos de prestação
de serviços terceirizados, com nomes das empresas contratantes e valores da
contratação. Essas informações, todavia, não são suficientes, dado que a
corrupção na terceirização de serviços manifesta-se, também, pelo
superfaturamento dos contratos em relação ao número de empregados realmente
colocados à disposição da administração pública, sendo notórios os casos em que,
no contrato há mais empregados do que o número realmente disponibilizado nos
postos de trabalho.
Portanto,
controlar quantas toneladas de lixo foram recolhidas, quantas árvores cortadas,
quantos empregados da empresa prestadora de serviços terceirizados estão
realmente trabalhando, se esses empregados estão recendo as verbas trabalhistas
de forma correta, se o serviço está sendo corretamente prestado, se os encargos
trabalhistas e impostos estão sendo recolhidos pela contratada, revela-se uma
tarefa hercúlea e até impossível para o servidor público designado gestor do contrato
e para o cidadão. É uma tarefa difícil para o Ministério Público, para as
Controladorias e para os Tribunais de Contas.
No
afã de mais controle, e para evitar a terceirização de serviços, mais
mecanismos são criados, como a conta vinculada aos contratos de prestação de
serviços. Por esse meio, a Administração Pública não entrega todos os recursos
para as empresas prestadoras de serviços, e destina parte dos recursos a uma
conta vinculada ao contrato de prestação de serviços, depositando nessa conta,
que só pode ser movimentada por ordem da Administração Pública, as verbas de
FGTS, aviso prévio, 13º salário e férias, que são verbas que eram pagas de
forma diferida, a cada mês, em cada fatura, mas, muitas vezes, no momento de
pagá-las ao trabalhador, a empresa alegava que não tinha recursos.
Em
mais um aspecto denotador da corrupção, empresas que recebem, por exemplo,
faturas de 10 meses consecutivos, quando chega o momento de pagar a metade do
13º salário (30 de novembro de cada ano), e, portanto, já receberam da
Administração Pública 10/12 da verba do 13º salário, alegam que não têm
recursos para pagar aos empregados. Mas como, se já receberam 10/12, e só têm
que pagar 6/12, já que o restante pode ser pago até 20 de dezembro de cada ano?
É por isso que se afirma que, basta o cidadão refletir sobre esses fatos, que
verá o mal que é a terceirização, não só para os empregados, mas para a
sociedade brasileira, pela sua potencialidade de propiciar a corrupção.
Com
a conta vinculada, busca-se evitar que os recursos estatais sejam desviados
pelas empresas, que em vez de utilizá-los para pagar aos empregados utilizados
no contrato, os utilizam para outros fins. Mas, deve-se convir que é uma medida
que exige a capacitação dos gestores públicos, impondo-lhes mais uma
responsabilidade. E tudo porque, já se verificou, na prática, que não é
possível confiar nas contratadas que prestam serviços terceirizados.
É
urgente, portanto, que a sociedade manifeste-se contra a terceirização nas
atividades estatais típicas e exija maior transparência nos contratos de
prestação de serviços terceirizados nas atividades-meio, exigindo-se, por
exemplo, que nas páginas de transparência sejam publicadas as planilhas de
custos e formação de preços dos contratos; as datas em que foram efetuados os
pagamentos das faturas; os nomes e CPFs dos empregados terceirizados lotados em
cada posto de trabalho, de modo a evitar-se empregados fantasmas e utilização
do nome e CPF de um mesmo empregado em vários contratos, quando, obviamente,
não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Sem controle, da forma como está se
espraiando, a terceirização de serviços não traz eficiência ao serviço público.
O que a realidade demonstra é que a terceirização de serviços tem sido um
mecanismo para a corrupção, propiciando o enriquecimento ilícito de alguns
empresários e servidores públicos, em detrimento de trabalhadores cada vez mais
explorados no trabalho e mais suscetíveis a acidentes de trabalho; e em
prejuízo do erário público..
Ileana Neiva Mousinho é Procuradora do Trabalho no Rio Grande do Norte.
Exatamente o que eu procurava sobre terceirizacao de servicos. Muito obrigada!
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