segunda-feira, 7 de julho de 2014

A TERCEIRIZAÇÃO E O SUPREMO (PARTE 4): A Terceirização e o Princípio da Legalidade



Milena Pinheiro Martins


Como já tratado aqui, o ministro Luiz Fux manifestou-se pela existência de questão constitucional no ARE nº 713.211/MG, sob o fundamento de que “A proibição genérica de terceirização calcada em interpretação jurisprudencial do que seria atividade-fim pode interferir no direito fundamental de livre iniciativa, criando, em possível ofensa direta ao art. 5º, inciso II, da CRFB, obrigação não fundada em lei capaz de esvaziar a liberdade do empreendedor de organizar sua atividade empresarial de forma lícita e da maneira que entenda ser mais eficiente”.

O entendimento pela existência de questão constitucional em torno da alegação de violação ao artigo 5º, II, da Constituição, no entanto, não encontra respaldo na jurisprudência massiva do Supremo, que, nesses casos, aplica quase que indistintamente sua Súmula 636, segundo a qual “não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade, quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida”. Em relação especificamente à temática da terceirização, adiante mencionam-se três casos.

No AI nº 751.763/PR, de relatoria do ministro Cezar Peluzo (julgamento em 17/09/2009), a então agravante, a empresa Ultrafértil S.A., fora condenada subsidiariamente ao pagamento de verbas trabalhistas em face do inadimplemento da empresa prestadora de serviços, com fulcro na Súmula 331, IV do TST. A tomadora, em seu agravo de instrumento em recurso extraordinário, alegou que “não há no nosso ordenamento jurídico norma legal que obrigue a Ultrafértil S/A a responder de forma subsidiária como se empregadora fosse do exequente, razão pela qual (…) também restou arranhado frontalmente o inciso II, do artigo 5º da CF”.

O Plenário Virtual, por maioria, entendeu pela ausência de repercussão geral da questão, destacando que a avaliação da violação aventada no apelo da Ultrafértil S.A. “dependeria de reexame prévio do caso à luz das normas infraconstitucionais, em cuja incidência e interpretação, para o decidir, se apoiou o acórdão ora impugnado, designadamente regras da CLT” (conforme já mencionado aqui).

Posteriormente, no AI nº 791.247/MG (julgamento em 13/04/2010) a ministra Cármen Lúcia negou seguimento ao agravo de instrumento da Telemar Norte S.A., por meio do qual a referida empresa havia se insurgido contra acórdão do TST que confirmou a existência de fraude aos direitos trabalhistas do reclamante, ocasionada pela terceirização de atividade-fim no setor de telecomunicações. O acórdão do Tribunal Superior do Trabalho, com base nesse fundamento, afastara a alegada violação ao artigo 3º da CLT.

O fundamento utilizado pela ministra foi de que “O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que a alegação de contrariedade ao art. 5º, inc. II, da Constituição da República, se dependente do exame da legislação infraconstitucional – na espécie vertente, do art. 94 da Lei n. 9.472/97 e do art. 25 da Lei n. 8.987/95 -, não viabiliza o recurso extraordinário, pois eventual contrariedade constitucional seria indireta”.

A Telemar S.A. interpôs ainda agravo regimental dessa decisão monocrática, alegando que “a jurisprudência sumulada do Tribunal Superior do Trabalho, através da Súmula 331 do TST, não proíbe a terceirização, mas, ao contrário, a regulamenta (…)” e que haveria autorização na Lei nº 9.472/97 à contratação com terceiros de atividades inerentes. A 1ª Turma do STF, no entanto, manteve o entendimento já proferido pela ministra Cármen Lúcia, destacando que a análise de afronta ao artigo 5º, II, da Constituição esbarraria no óbice da Súmula 636/STF.

Por fim, no AI nº 824.319/MG (julgamento em 04/11/2010), que tratava do mesmo tema do AI nº 791.247/MG, novamente se alegou ofensa ao artigo 5º, II, da Constituição para se sustentar que não seria devido o reconhecimento do vínculo empregatício com o tomador de serviços que contratou prestadora para a execução de atividade-fim. O ministro Joaquim Barbosa, numa decisão monocrática muito sucinta, negou seguimento ao agravo, fazendo menção aos fundamentos da decisão do AI nº 751.763/PR.

Considerando-se, ainda, que em processos relativos a inúmeras temáticas o entendimento do STF vem sendo o mesmo em relação ao artigo 5º, II e o óbice da Súmula 636/STF, causa admiração que, no ARE nº 713.211/MG, tenha sido adotada posição diametralmente oposta, especialmente quando se considera que, a princípio, o STF havia decidido na linha dos demais julgados mencionados aqui, tendo modificado seu entendimento apenas em sede de embargos de declaração sem que houvesse quaisquer contradições, omissões ou obscuridades no acórdão embargado.

O sentimento de estranheza é potencializado pelo fato de que a CLT, em seus artigos 2º e 3º, estabelece como contrato de trabalho padrão o contrato bilateral, com todos os seus caracteres (pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade), em um claro limite à terceirização irrestrita, que afeta todas essas características. A existência dessa previsão vai de encontro à ideia de que a proibição à terceirização de atividade-fim não está “fundada em lei capaz de esvaziar a liberdade do empreendedor de organizar sua atividade empresarial de forma lícita e da maneira que entenda ser mais eficiente”.

As exceções a essa regra geral também receberam o devido tratamento legal. O Decreto-Lei nº 200/67, editado na ditadura militar, já previa em seu artigo 10, § 7º, sob o argumento da desburocratização, que “a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato”. O parágrafo único do artigo 3º da Lei nº 5.645/70, já revogado, dimensionou o que seriam essas atividades: “transporte, conservação, custódia, operação de elevadores, limpeza e outras assemelhadas”, previsão que começou a desenhar o conceito de atividade-meio. Posteriormente, outros diplomas estenderam a prática ao setor privado, como é o caso da Lei nº 6.019/74 (trabalho temporário), Lei nº 7.102/83 (serviços de vigilância bancários) e Lei nº 8.863/94 (que modificou a Lei nº 7.102/83 para inserir as hipóteses de serviços de vigilância em geral e serviços de transporte de valores, bem como garantia de transporte de quaisquer outros tipos de carga). A Súmula 331/TST configurou uma espécie de síntese de todas essas previsões.

Reitera-se, assim, que a análise de violação ou não ao artigo 5º, II da Constituição, ao contrário do que manifestou o Plenário Virtual do STF, passa pela análise prévia de toda a legislação mencionada. Em casos semelhantes, o STF nunca se furtou à aplicação de sua Súmula 636, sendo sintoma de uma avassaladora sede por mão-de-obra barata que justamente o tema da terceirização de atividade-fim, a despeito da modalidade de contratação prevista na CLT, tenha servido para sacrificar uma súmula tão cara à organização judiciária.

É necessário, portanto, que o Supremo, no julgamento de mérito, reavalie os pressupostos de admissibilidade do recurso da Cenibra e reveja seu entendimento em relação à constitucionalidade da questão, levando em conta que a manifestação do ministro Luiz Fux destoa por completo de inúmeros outros acórdãos em que se aplicou a Súmula 636/STF. E não destoa para avançar, mas para desproteger, num forte golpe às conquistas trabalhistas acumuladas até aqui.

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Milena Pinheiro Martins é advogada trabalhista, graduada em Direito pela Universidade de Brasília.

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