A publicação original pode ser consultada no endereço eletrônico a seguir: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-que-vem-depois-da-crise-o-estado-social-nos-lembra-o-seu-papel-08042020
O que vem depois da crise? O Estado Social nos lembra o seu papel
GABRIELA NEVES DELGADO
RENATA QUEIROZ DUTRA
A
humanidade enfrentou diversas crises em sua história, associadas às
disputas por poder político, por bases político-territoriais, por
hegemonia econômica, entre outras causas. As crises tendem a convocar
mudanças e ressignificações, situando a impermanência no centro da vida.
É
sabido que os processos de crise do capitalismo no século XX provocaram
uma reconfiguração paradigmática do Estado e de seu papel garantidor de
direitos fundamentais, mediante a articulação do conceito de Estado Social de Direito.
Assim ocorreu com a crise de 1929, nos EUA, em que o desastre
financeiro dali resultante foi decisivo para o favorecimento de
políticas sociais e de reformas econômicas estruturadas na intervenção
do Estado na economia. Em dado contexto, foi formatada uma das políticas
de intervenção social mais expressivas do período, o New Deal, desenvolvido a partir do referencial teórico de John Maynard Keynes – o denominado Keynesianismo.
Na
mesma linha, em meados do século XX, os impactos causados pela segunda
grande guerra também reorientaram a política estatal em torno da
construção de um projeto de Estado de Bem-Estar Social, capilarizado em
quase todos os países do ocidente europeu, à exceção de Espanha e
Portugal, que somente ingressaram na fase democrática tempos depois, já
na década de 1970, com o término de seus respectivos regimes fascistas.
Esse
projeto de Estado Social de Direito basicamente se legitimou como o
modelo de Estado predominante na Europa ocidental entre os anos de 1945
até aproximadamente o final da década de 1970, momento em que foi
entrecortado pela difusão da política neoliberal com suas referências de
restrição aos direitos sociais, de integração de mercados financeiros e
de consumo desenfreado, até hoje prevalecentes.
Tudo indicava que o neoliberalismo permaneceria intacto num futuro próximo. Mas a crise do coronavírus rapidamente expôs as fragilidades e injustiças desse modelo, abrindo caminho para novas configurações.
Mais
uma vez, a circunstância de crise nos ensina. E, nesse momento, ensina
justamente a desaprender aquilo que a racionalidade neoliberal nos vinha
fazendo naturalizar: as regras de mercado não podem resolver tudo e, se
não forem limitadas e controladas pelos mecanismos de regulação
estatal, como ensinou Karl Polanyi1, podem conduzir à degradação humana e ao colapso social.
Pierre
Dardot e Christian Laval, quando apostam na conceituação do
neoliberalismo como uma racionalidade que contamina os mais diversos
aspectos das relações sociais e da vida humana, acertam ao perceber que
há, sob a hegemonia neoliberal, não apenas um questionamento do papel do
Estado, mas também do funcionamento de toda a esfera pública, do
trabalho e das relações sociais construídas nos planos individual e
coletivo2.
O
neoliberalismo traz o esvaziamento do conteúdo político da esfera
pública e de decisões pautadas em valores de humanidade, para que, de
forma unilateral e autoritária, todas as decisões sejam regidas por um
único vetor ideológico: os interesses abstratos do mercado e sua
indiferença às formas de desigualdade e de vulnerabilidade presentes na
sociedade.
Trata,
também, do esvaziamento da regulação do trabalho e da tela pública de
proteção social, sobretudo em tempos de intensificada tecnologia
digital, em que o trabalhador é equivocadamente compreendido como
“homem-empresa”, convocado a garantir os resultados dos seus
investimentos, administrar os prejuízos e lucros, assumir riscos e
oportunidades, numa linguagem que se distancia intencionalmente dos
parâmetros das relações sociais concretas e das referências
constitucionalizadas de cidadania plena e de proteção ao trabalho em
condições de dignidade.
O
neoliberalismo, assim, se perfaz como ideário que exacerba o
individualismo, desfazendo, lentamente, os laços de solidariedade
capazes de assegurar coesão ao tecido social em sua teia de relações
construídas por heterogêneas realidades.
Foi
esse o discurso que decretou a desconstrução do Estado Social,
instituindo reformas desarticuladoras de seus mais importantes
instrumentos jurídico-institucionais, caracterizadas por uma desatenção
às questões sociais. Os exemplos são variados e presentes em escala
global, destacando-se, no caso brasileiro, o inusitado engessamento, por
emenda constitucional, por 20 anos, dos gastos do Estado, seguido das
precarizantes reformas trabalhista e da previdência social, além de
diversos outros diplomas normativos, também de caráter flexibilizatório,
que as sucederam.
Desde
meados da década de 1970 até a atualidade, a política neoliberal
atingiu não só países desenvolvidos, mas principalmente países
emergentes ou periféricos, que mantêm suas economias dependentes e
posicionadas a reboque das grandes economias do globo. Nos países
periféricos, a política neoliberal teve maior penetração,
apresentando-se mais agressiva, porque, neles, a construção de uma
práxis de cidadania democrática e de democracia política era em sua
maior parte incipiente, com projetos ainda não inteiramente consolidados
de promoção de direitos humanos, de desenvolvimento social e de
proteção ambiental e cultural.
O neoliberalismo se afirmava como projeto inexorável e perene até que sucedeu a pandemia e, com ela, a crise.
O
que se assistiu, então, foi um processo de estupefação coletiva diante
da percepção da intensa dependência da sociedade em relação a uma
estrutura estatal tão frágil. Diante do coronavírus, as leis de mercado,
por não compartilharem projetos comuns de humanidade, tentaram fazer
crer que o cuidado e a proteção são estritamente individuais: cada um
que cuide de si e dos seus, na estrutura de sua vida privada. Como se o
sentido de preservação e a sensação de paz estivessem apenas dentro de
nossas casas (ou dentro de nós mesmos), numa perspectiva estritamente
individualista. Esta seria a saída considerada possível. Aliás, a lógica
individualista neoliberal corrobora esse pensamento ao se afigurar como
treino para que o ser humano não desenvolva seu papel e consciência
sociais, para que o outro continue sendo um estranho invisibilizado,
preservada a distância de segurança.
Contraditoriamente,
o isolamento social é a solução científica apontada para a contenção do
vírus, como orienta a Organização Mundial de Saúde – OMS, mas só pode
funcionar se essa for uma estratégia encampada de modo coletivo e
igualmente por sujeitos em diferentes situações de risco. Esse caminho,
ademais, se apresenta como de difícil operacionalização para pessoas
inseridas em relações de trabalho precárias, informais e vulneráveis,
que vivem em péssimas condições de moradia e desprovidos de saneamento
básico e para quem o isolamento social não se afigura como alternativa,
diante da demanda por garantia de subsistência.
É
exatamente nessa circunstância de crise, impermanência, assombros e
perdas que o Estado Social é convocado a atuar para redefinir os rumos
da sociedade, rompendo fronteiras econômicas e sociais até então
cristalizadas. Nenhum de nós quer perder os pais, os avós, a respiração
ou o salário no fim do mês. E, nesse momento, não há como resolver
questões tão intrincadas como essas sem a atuação do Estado. A ação é
necessária e também se torna prenúncio de um tempo de virada.
Para
fazer frente à grave crise provocada pelo coronavírus, alguns países
estruturaram importantes políticas estatais intervencionistas, de
variados matizes, dinâmicas complexas e múltiplas variáveis, numa lógica
de atuação comunitária e focada na preservação da vida humana. O
repertório internacional de medidas de enfrentamento da pandemia é, além
de largo, contrário a tudo o que vinha pregando o receituário
neoliberal. Agora, acertadamente, se fala em renda mínima para os mais
vulneráveis e para os não alcançados pelo Direito do Trabalho; proteção
trabalhista para que os empregados não se contaminem, não percam seus
empregos e tenham assegurada sua inserção social e previdenciária
durante a crise sanitária; saúde pública e universal para que todas e
todos – independente de classe social, raça, ou gênero – possam ser
prevenidos e cuidados em face da pandemia; gestão pública concertada e
capaz de viabilizar, com oferta dos serviços essenciais, o respeito às
prescrições de saúde coletiva, como o isolamento; investimento público
para manter o funcionamento da economia durante o momento de retração da
demanda e, sobretudo, na retomada das atividades, após vencida a crise
sanitária.
Esse
bem traçado projeto passa pelo pressuposto ético mais repetido no
noticiário internacional: primeiro a vida, depois a economia. E o
projeto de Estado de Bem-Estar Social, aperfeiçoado pelo modelo de
Estado Democrático de Direito, se coloca como o caminho necessário
justamente por pressupor que o funcionamento da economia decorre e serve
à preservação e à valorização da vida humana, e não o contrário.
Com
estrutura pública de suporte aos complexos arranjos sociais diante da
crise viral que nos assola, o Estado Social ainda pode operar como vetor
para que a renda, o consumo e a proteção social reverberem em
crescimento econômico, até que finalmente chegue a bonança.
Assim,
a capacidade de reinventar o presente e o futuro, como tempo propício à
revitalização dos projetos de vida, à construção de relações sociais
menos desiguais e ao cumprimento de expectativas civilizatórias, nos
fortalece enquanto todo social unido por vínculos de solidariedade, num
conjunto no qual o Estado Social tem um papel que, mais uma vez na
história da humanidade, se mostra imprescindível.
———————————————-
1 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
2 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário