quinta-feira, 2 de abril de 2015

Terceirização: o risco de a Constituição de 1988 não valer para os trabalhadores

                     

                                                                         *Grijalbo Fernandes Coutinho

Tem sido enorme a pressão empresarial para o Estado autorizar a terceirização generalizada em todas as atividades econômicas. Não raro, até mesmo integrantes dos poderes proclamam que o tema deve ser objeto de rápida decisão porque assim esperam os agentes econômicos. Passam a enganosa impressão, com as suas falas oficiais, que a medida é necessária para proteger os empregados.
Ora, a terceirização encontra-se interpretada ou regulamentada desde 1993, ao menos sob a configuração jurídica que agora se pretende alterar no âmbito do Parlamento e STF, com reduzidas modificações ao longo dos anos no conteúdo da Súmula nº 331, do TST. Com a celeridade almejada busca-se evitar a ampliação do debate público na sociedade brasileira sobre os efeitos da terceirização para o conjunto das relações de trabalho. Quanto menor for a mobilização popular, maiores serão as chances da aprovação do trabalho terceirizado sem estardalhaço sindical e operário.
Inegavelmente, o trabalho e todas as suas instituições protetivas padecerão, na hipótese de  a terceirização  ser  liberada de forma generalizada.
O PL 4.330/04, previsto para ser votado nos próximos dias, autoriza a terceirização sem freios, em contraposição aos limites impostos pela interpretação contida na Súmula nº 331 do TST, que hoje a admite apenas na atividade-meio. A referida iniciativa parlamentar apoiada por representações empresariais tem, como princípio nuclear, a liberação da terceirização na atividade-fim, acompanhada da responsabilidade subsidiária das empresas tomadoras. Os demais dispositivos da proposta expressam apenas o desejo de escamotear a essência do duro golpe desferido contra o Direito do Trabalho. São disposições aparentemente protetoras da execução do contrato de prestação de serviços firmado entre empresas, responsáveis, contudo, pela legitimação do fenômeno em sua vertente mais predatória, de modo que não apenas sejam intensificadas as condições de trabalho degradantes hoje oferecidas aos trabalhadores terceirizados, como também  reste  viabilizada a extensão das perversas condições ao grande grupo obreiro que irá fatalmente compor o rol dos terceirizados, aumentando, portanto, os níveis de proletariedade social.
A lógica do tudo terceirizável, no âmbito das relações de trabalho, legitimará o funcionamento das grandes empresas e dos conglomerados econômicos praticamente sem empregados formais em seus  respectivos quadros de pessoal. O modelo, com certeza, não interessa aos trabalhadores, que passam a negociar exclusivamente com  intermediários os quais atuam como mera correia de transmissão do sistema, do ponto de vista mais geral.
Diferentemente do discurso dominante, sem qualquer hesitação, a proposta em debate legitima o modo de gestão patronal terceirizante em sua vertente mais perversa contra os trabalhadores. Não poderia ser pior, tanto para a classe trabalhadora, quanto para a sociedade brasileira comprometida com a Justiça Social.
 Tanto é assim que temas básicos capazes de, em tese, minimizar os efeitos danosos de ação inexoravelmente redutora de direitos sociais sequer são cogitados na discussão legislativa, tais como, restrição do trabalho subcontratado às atividades de natureza transitória, responsabilidade solidária de todas as empresas integrantes do processo produtivo, isonomia absoluta entre trabalhadores centrais e terceirizados e enquadramento sindical obreiro com base na atividade da tomadora de serviços.
As condições laborais, a partir de eventual terceirização generalizada, serão muito mais degradantes, tudo em nome da competividade e do consequente aumento das taxas de lucro. A terceirização existe não para modernizar o processo produtivo senão para arrancar até o limite extremo o potencial criativo, combativo e gerador de riquezas da força de trabalho, que passará a ser remunerada nos níveis mais baixos possíveis no âmago dessa nova marchandage comercializada midiaticamente como solução para o mundo do trabalho infernal criado pelo próprio modo de intermediação e subcontratação de mão de obra, a ser inexoravelmente aprofundado, caso vingue o sonho de consumo atual das forças hegemônicas da economia.
Em vez de banir o mal maior das relações de trabalho, persegue-se, concretamente, transformá-lo na regra geral, pouco importando o destino das pessoas que sofrem intensamente com o impacto da terceirização em variadas dimensões de suas vidas, bem como de outros milhões de serem humanos trabalhadores que também pegarão brevemente a fila do corredor da morte, opressão, humilhação, do decepamento de partes do corpo, das doenças laborais e da precariedade absoluta do ambiente de trabalho permeado por contundente intolerância social com os sujeitos construtores da riqueza nacional.
Junto ao STF, as entidades empresariais desenvolvem duas teses centrais para alcançar a escancarada terceirização, quais sejam, liberdade de contratação e ausência de lei vedando o trabalho subcontratado na atividade fim (art. 5º, II, da CRFB, “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”).
Invocar a liberdade de contratação para autorizar a terceirização generalizada ou qualquer outra forma de precarização das condições de trabalho seria extremamente adequado a partir do prisma jurídico vigente durante o auge do liberalismo econômico, nos séculos XVIII e XIX, na Europa. Com base em tal paradigma, crianças foram submetidas ao terror das condições degradantes geradoras de suicídios, acidentes graves e mortes ao lado das máquinas. Mulheres e homens trabalhadores sofreram maus tratos diversos no ambiente laboral como vítimas de crimes praticados em nome do lucro máximo, embora pouco pudessem fazer, do ponto de vista jurídico, porque a liberdade de contratação assegurava aos patrões arrancar-lhes até a última gota de sangue, em contraste com a opulência dos donos das máquinas.
Entre o século XIX e os dias atuais mudou substancialmente o panorama econômico, político e jurídico no mundo inteiro. Eclodiram duas guerras mundiais ocasionadas pelo liberalismo, revoluções sociais foram feitas para assentar no poder a classe trabalhadora e explodiram grandes crises econômicas e financeiras, tudo resultando no reconhecimento público, por parte de um capital envergonhado pela herança deixada, do completo fracasso da veia liberal, em todos os campos do conhecimento humano, nos dois séculos de existência de modelo fincado na absoluta liberdade de contratação.
Em outros termos, o pressuposto da livre contratação morreu juridicamente há quase um século. Nada é mais arcaico ou ultrapassado do que o seu ressurgimento para emprestar fantasmagórico conteúdo jurídico às novas formas de exploração da mão de obra humana, quando a essência do Direito do Trabalho reside exatamente na superação da antiga teoria civilista da liberdade contratual, sobretudo na perspectiva da efetividade de seus princípios orientadores protetivos do hipossuficiente.
Relativamente a outra matriz jurídica invocada, cabe dizer que, caso pudesse a terceirização ser implementada em razão do inciso II do artigo 5º da Constituição, cujo conteúdo próprio das aspirações de uma época histórica tem integrado há muito tempo textos constitucionais anteriores, qual seria o motivo de termos leis cuidando da autorização do trabalho terceirizado em atividades específicas, no Brasil e no mundo?
 A terceirização é conduta absolutamente excepcional, estranha e repudiada historicamente pelo Direito do Trabalho. A sua existência jurídica depende, em primeiro lugar, de regulação da matéria pelo Poder Legislativo, sem prejuízo, contudo, do debate posterior acerca de sua compatibilidade ou não com o conjunto harmônico do ordenamento.
Para além e também em respeito às perspectivas jurídico-laborais frontalmente contrárias à subcontratação de trabalhadores, uma vez que o conhecimento jurídico jamais deve ignorar as tragédias sociais causadas por variados fenômenos, pesquisas acadêmicas realizadas nas últimas décadas, bem como a atuação da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho, revelam que a terceirização, por força da sua razão primordial de ser ancorada na drástica redução de custos, está umbilicalmente associada ao caos no ambiente de trabalho. Adoecimentos, graves acidentes com mortes e mutilações, salários baixíssimos, jornadas intensas e  extenuantes, trabalho análogo ao de escravo, direitos imateriais intensamente violados, invisibilidade social, esfacelamento sindical e degradação geral das condições de trabalho simbolizam tragicamente o que significa de fato a crueldade da terceirização.
 Na hipótese de chancela da terceirização na atividade-fim, o trabalho será tratado como o lixo das relações sociais por parte de quem lucra muito com o seu resultado, dado o desprezo a ser conferido a esse direito humano fundamental próprio da parte numérica mais expressiva da sociedade brasileira, a classe trabalhadora.
Detendo 25% do mercado de trabalho (Dieese, 2011), caso reste autorizada na atividade-fim, a terceirização ocupará espaço muito mais expressivo rapidamente, aumentando, sem dúvida, a tragédia social assim constada a partir de sua prática no Brasil.
Humilhações, mortes, adoecimentos, salários irrisórios, jornadas intensas e extenuantes, desemprego, violação de direitos imateriais, segregação, trabalho precário e degradante, trabalho análogo ao de escravo e outros graves problemas sociais serão intensificados em grau exagerado, a ponto de os integrantes das instituições públicas da regulação e proteção do trabalho,  incluindo os  auditores-fiscais, procuradores e juízes do trabalho, logo constatarem a sua absoluta inutilidade para fazer valer a justiça social inscrita como compromisso fundamental da Constituição de 1988.
Valorização do trabalho como princípio fundante da República, respeito à dignidade humana do trabalhador, necessidade da existência de ambiente saudável do trabalho, combate a qualquer tipo de trabalho degradante, função social da propriedade, livre iniciativa respeitando o primado do trabalho, entre tantos outros princípios e dispositivos previstos na Constituição Federal de 1988, far-se-ão tão eficazes quanto os direitos humanos civis clássicos durante a ditadura civil-militar de 1964-1985.
Liberada a terceirização na atividade-fim e em todos os setores econômicos, a Constituição de 1988 será de um vazio estrondoso e monumental em termos de Direitos Humanos. O risco é de o texto constitucional não valer para os trabalhadores, porquanto os direitos sociais ali previstos terão nenhuma efetividade.
O Estado Democrático de Direito perderá completamente o seu cunho social e a sua face cidadã em relação à classe trabalhadora. Nascerá, em contrapartida, o Estado Democrático de Direito do Capital, cujo seu primeiro direito fundamental consagrará a terceirização sem limites como mecanismo de avassalador aniquilamento de direitos dos personagens antes considerados humanos trabalhadores.


 *Grijalbo Fernandes Coutinho, juiz do  do trabalho  de segunda instância no DF e Tocantins(TRT 10), mestre em Direito e Justiça pela UFMG, autor da pesquisa e do livro “Terceirização: Máquina de Moer Gente Trabalhadora – A inexorável relação entre a nova marchandage e degradação laboral, as mortes e mutilações no trabalho -”(LTR, 2015), ex-presidente da Anamatra.

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